O Louco, Aquele que Traz um Deus Consigo

O Manto da Apresentação - Arthur Bispo do Rosário
O Manto da Apresentação – Arthur Bispo do Rosário. “(…) trazia em seu avesso, inscritos, os nomes de seus eleitos, em sua maioria mulheres, agraciados pelo mérito de subir ao céu sob sua recomendação” ( do livro O Senhor do Labirinto de Luciana Hidalgo).

No universo arquetípico, o Louco cumpre a danação de Dionísio, o deus gestado pela mãe, Sêmele, e pelo pai, Zeus, parido, dilacerado e renascido a partir do coração, do qual se fez uma garrafada oferecida à Perséfone, aquela que transita entre os mundos das Trevas e da Luz.

Contagiado pela loucura de Hera, a patroa de Zeus, uma deusa muito do ciumenta que, para sua desgraça foi casar logo com um galinha, Dionísio vagou pelo mundo natural convivendo com a sabedoria selvagem dos loucos e dos animais. O Louco conhece a experiência da inadequação e a solidão absoluta, por isso mesmo tem algo a nos ensinar.

No Tarô é a carta mais poderosa, o signo que dá início ao processo de autoconhecimento. No mundo simbólico, introduz o extraordinário, o misterioso e o intuitivo em nosso cotidiano mundo racionalmente ordenado, estabelecido. O Louco aponta insistentemente para a Vida, para os ciclos orgânicos, para o interminável movimento da Natureza.

Nas cortes medievais ele era o Bobo, o alter ego do Rei, o confidente, talvez o espião, cuja função era servir de contraponto às decisões reais dizendo-lhe verdades que ninguém ousaria dizer. No jogo de cartas é o Coringa, a carta que preenche os vazios, a que dá completude, a que faz a ponte; é a peça que faltava.

Hoje passamos distraídos enquanto eles equilibram malabares, engolem fogo e chacoalham os guizos nas esquinas e sinaleiras das nossas cidades. Alguns ainda preservam seus barretes e capuzes. Às vezes lhes atiramos uma miserável moeda.

Essas presenças fantásticas, aparentemente anacrônicas, inconcebíveis até, num mundo urbano e tecnológico como o nosso, talvez queiram alertar para os compromissos ancestrais do espírito humano e as verdades transcendentes, algo do qual nos afastamos descuidada ou deliberadamente. Esses abençoados seres denunciam, na verdade, a nossa própria loucura. Arthur Bispo do Rosário disse que os loucos “são como beija-flores, nunca pousam, ficam a dois metros do chão”. Ele devia saber do que estava falando.

” – O senhor não está vendo nada aqui em cima da minha cabeça?

– Não, respondia o guarda AJ.

– Como não? Eu trago um deus comigo. Ele está peneirando aqui em cima, quer falar comigo.

Era a senha do novo chamado. Ele então chegava perto do inspetor Altamiro e pedia, firme:

Me prende porque eu estou me transformando.

– Em quê? – perguntava Altamiro.

– Em rei. Me prende que eu vou entrar em guerra.

E andava de um lado a outro lado da cela, mão na  cabeça, premido por uma insuportável pressão. Desfiava um rosário de frases desconexas, mencionava reis, rainhas, nobres do mundo que, de tão feéricos, inexistiam. Na maior parte das vezes, Bispo fazia a distinção:

– Eu sou o rei dos reis”. 

oOo

(O diálogo acima foi destacado do livro Arthur Bispo do Rosário O Senhor do Labirinto da Luciana Hidalgo, publicado pela Rocco, naturalmente. O texto introdutório é uma releitura absolutamente livre que fiz de Jung e o Tarô Uma Jornada Arquetípica, da Sallie Nichols, publicado pela Cultrix . É parte da crônica Metamorfose publicada em A Minha Aldeia, meu primeiro livro, editado pela Papa-Livro em 2004).

2 comentários sobre “O Louco, Aquele que Traz um Deus Consigo

  1. Diego Almendras

    No escribo en portugués porque no se me da fácil. Agradezco estas lineas que me ayudan a poner un poco mas de insensatez en la racionalidad de la vida. saludos!

    1. Que lindo, Diego Almendras! Fico feliz em ter contribuído. Eu cultivo a minha insensatez com muito cuidado. Costumo dizer que já nasci tonteada e vivo, por convicção e circunstância, a três palmos do chão. Planejo e analiso meus caminhos para encontrar a melhor forma de caminhar, mas minha intuição é meu guia. E não costuma falhar! Um prazer receber a tua visita!

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