A Cidade e o Progresso

“Se a farinha é pouca, o meu pirão primeiro”.

Ribeirão da Ilha foto de Renato Gama (2004)

 A função essencial de uma cidade é promover o conforto, a segurança e a convivialidade dos cidadãos, algo que, historicamente, não faz parte das preocupações dos gestores de Florianópolis pouco afeitos ao planejamento competente e à criatividade empreendedora. O que se vê são desempenhos baseados em reação por demanda, típicos de “administradores de focos de incêndio” e a adoção de um modelo desenvolvimentista que vende a falsa imagem de uma “Ilha da Fantasia” cujo objetivo é a atração intensiva de turistas e migrantes, a tal “gente bonita” (leia-se forrada de dinheiro) tão mencionada nos folhetos turísticos e nas colunas dos jornais.

Aos antigos residentes, nativos e naturalizados, resta a percepção de uma brutal perda de qualidade de vida enquanto se intensificam os esforços para atrair cada vez mais pessoas e seus carros, para construir mais e mais condomínios, uma visão predatória que desconsidera a fragilidade do ecossistema ilhéu, a riqueza dos seus sítios históricos e a precariedade dos equipamentos públicos. O aumento da violência faz parte desse pacote; afinal, criminosos também migram em busca de oportunidades de trabalho.  É como comer siria ovada sem pensar no futuro. Tem uma hora que o siri acaba.

Somos uma “aldeia praiana” como disse uma turista, pejorativamente, comparando Florianópolis à sua cidade de origem, mas temos problemas de cidade grande. Essas comparações, além de equivocadas são perigosas, pois favorecem o discurso que desvaloriza a cidade como ela é (qualquer cidade) e legitima drásticas intervenções no espaço urbano, uma prática que despersonaliza os lugares e as pessoas e atende aos interesses de quem vê tudo como mercado.

O problema é que, a partir do discurso depreciativo vindo do outro, o cidadão desenvolve um olhar depreciativo sobre a sua cidade, depois sobre si mesmo e seu modo peculiar de ser e acaba por sentir vergonha de ser quem é, basta ver a apropriação (hoje todo mundo é manezinho) e a ridicularizarão do “Manezinho da Ilha”. Apelando para um legítimo desejo de mudança e prosperidade, o caminho está aberto para que o indivíduo seja persuadido da necessidade/inevitabilidade das intervenções no patrimônio natural e cultural o que, ao longo do tempo, promove a total descaracterização da cidade. Nada contra o progresso, desde que ele não seja predatório. Arremedando o nativo, eu diria que, hoje, em Florianópolis, impera a política do “Se a farinha é pouca, o meu pirão primeiro!”.

A proposta de atualizar Florianópolis não é nova e apela, sem constrangimento, para a substituição dos edifícios históricos e da apropriação da paisagem como solução para as demandas e problemas da cidade. O Miramar é o nosso exemplo mais triste, mas, infelizmente não é único. “É preciso aproveitar que a cidade está na moda” dizem uns, “Florianópolis precisa crescer” evocam outros, mal disfarçando a ideia de que é preciso corrigir a cidade – como se houvesse algo errado com ela.

O resultado é que Florianópolis se transformou no paraíso das empreiteiras, parceiras generosas na República-Do-Toma-Lá-Dá-Cá em que se transformou o Brasil.

Na prática, essa conduta costuma ser desastrosa para a Memória e para o meio ambiente como mostram os desmatamentos e invasões de APPs praticadas tanto por abonados quanto por desvalidos. Assim como os incêndios misteriosos e demolições de prédios e casas antigas que vêm ocorrendo em Florianópolis e região, providencialmente ocorridos à noite ou em finais de semana prolongados, muitas vezes com autorização/conivência daqueles que deviam protegê-las, diga-se de passagem. Traduzindo: aqui não tombamos, deixamos que tombem, se é que me entendes.

Precisamos re-pensar as cidades com mentes e corações abertos para enxergá-las de um modo mais amoroso e mais inteligente. Precisamos oferecer recompensa, incentivo real, não os míseros trocados da isenção do IPTU, aos proprietários de imóveis que tenham valor histórico ou afetivo para a cidade. Precisamos, sobretudo, ampliar o conceito de “progresso” abandonando a visão tacanha baseada em premissas excludentes como ou progresso ou memória ou paisagem e avançar para modelos virtuosos que conjugam progresso e memória e paisagem.

Creio que as cidades precisam de gestores visionários e empreendedores, não do gênero “mestre de obras” tão ao gosto dos nossos homens públicos ávidos por empilhar tijolos onde possam inscrever seus nomes em obras de utilidade muitas vezes duvidosa. Mais que gerentes, prefeitos e também vereadores, devem ser cuidadores da cidade. No que toca à Florianópolis, só nos resta bradar: Valei-nos Senhor dos Passos! Valei-nos, Velho Franklin!