A Memória ao Rés do Chão

O que estava acontecendo em 1886 na Cidade de Nossa Senhora do Desterro, no Brasil e no Mundo quando a primeira pedra foi assentada no chão de terra localizado entre a ruas da Lapa, a Rua do Açougue, a Augusta e a Rua da Cadeia?

      Einstein ainda usava fraldas, Coco Chanel não podia escolher seus vestidinhos, Picasso desenhava com a genialidade de uma criança de cinco anos, Van Gogh a recém havia começado a dar as suas pinceladas, Fernando Pessoas, Charles Chaplin e Alfred Hitchcock não tinham nascido. 

      No ano em que os calceteiros, homens simples e presumidamente escravizados, assentaram aquelas pedras no chão de terra da provinciana Desterro, o telefone ainda era uma novidade mundial restrita aos endinheirados,  Thomas Alva Edison há pouco havia logrado êxito nas suas famosas “dez mil tentativas” de inventar a lâmpada elétrica,  Karl Benz apresentava o automóvel, sua extraordinária invenção e a Coca Cola, essa mistura de “xarope, água carbonada, muito sal e muito açúcar”, era vendida pela primeira vez nos EUA. Quem diria no que ia dar…

      Naquele mesmo ano, na Alemanha, morria Franz Liszt, o virtuoso pianista austro-húngaro; em Nova Iorque era inaugurada a Estátua da Liberdade e, em Chicago, acontecia o Massacre de Haymarket que acabaria por influenciar a criação do Dia do Trabalho. Robert Louis Stevenson, o escritor britânico, publicava “O Médico e o Monstro”, sua obra-prima e a Rainha Vitória fazia e acontecia no seu império sem direito ao lusco-fusco. 

      O calçamento de pedras do Centro Histórico, pois, é mais velho do que a Torre Eiffel; do que o Rádio e do que o primeiro voto feminino no mundo; mais velho do que o Cinema e a descoberta do RX. É apenas um ano mais novo do que a Lei dos Sexagenários, mas é dois anos mais velho do que a Lei Áurea; tem a mesma mais que centenária idade do poeta Manuel Bandeira e da pintora Tarsila do Amaral; já o Getúlio Vargas é quatro anos mais velho. Heitor Villa-Lobos, por sua vez, é um ano mais moço. Mais moços são também a Academia Brasileira de Letras, Pixinguinha e Lampião.                           

      Em 1886, Santos Dumont era um rapazote magrelo e imberbe e ninguém apostaria em seu futuro grandioso. O arruamento de paralelepípedos é mais velho do que o avião, tem mais “chão” do que a República Brasileira e que a primeira música de Carnaval.

    Fora a novidade, naquele ano os moradores da portuária Desterro andavam apreensivos com as notícias de um surto de Cholera Morbus na Argentina, pois as centenas de vítimas da Febre Amarela, da Varíola e outras enfermidades relacionadas à saúde pública eram registros de fresca memória na cidade.

      A Figueira, então uma jovem árvore de cerca de vinte anos, ainda não havia sido transplantada e enraizada em seu lugar central e definitivo na Praça da Matriz, atual XV de Novembro que, naquela altura, não tinha esse nome uma vez que a República Brasileira ainda não havia sido proclamada. Sim, senhoras e senhores, aquele paralelepípedo é do tempo do Império. Como dura aquela coisa!

      O imponente prédio da Alfândega era algo relativamente recente na paisagem urbana e mesmo o novo Mercado Público ainda demoraria uns bons anos para ser construído. O Clube Doze de Agosto, o clube social mais antigo de Santa Catarina,  reunia as “boas famílias” da cidade em elegantes soirées dançantes há pouco mais de uma década. 

      Por aqueles arruamentos caminharam, em diferentes épocas e por diversos motivos, Victor Meirelles, Cruz e Sousa, Antonieta de Barros, Virgílio Várzea, Crispim Mira, Franklin Cascaes e tipos populares como o Bento, a Pandorga, o Papo Amarelo, a Barca-Quatro, a Nega Tita, a Traça e outros seres aluados, além  das inúmeras pessoas anônimas moradoras das casas de porta-e-janela da região da Pedreira, lugar de gente pobre, trabalhadores a caminho do seu ganha-pão como o meu avô Manoel Antônio Bruno, exímio marceneiro requisitado por “gente da alta”, como o meu pai, Lourival Bruno, a caminho do seu ofício na Rádio Diário da Manhã e também gente futuramente famosa como o menino Zininho, vizinho dos meus avós no Largo Treze de Maio. 

    Por ali também eu passei, pequenininha, de ônibus, de mão dada com a minha mãe, D. Aurelina, em nossas muitas vindas do Saco dos Limões até a “Cidade” para comprar aviamentos ou um corte de fazenda para ela fazer nossas roupas de vestir. Também passei por aquelas ruas de carro, a família toda presepeira em nosso velho Hillman de cor creme, nos tão aguardados passeios em “dia de salário” para comprar revistas na banca da Praça Fernando Machado.  

      Por fim, por aquele chão passou e passa, há 275 anos, o Querido e Glorioso Nosso Senhor dos Passos acompanhado de Sua Mãe e um mar de gentes a pedir e a agradecer as graças alcançadas e isso, por si só, deveria bastar para haver um pouco mais de cuidado e reverência com aquelas pedras centenárias. 

      Mas, se nada disso te convence da importância histórica e afetiva daquelas ruas estreitas e das inúmeras razões para a preservação do Calçamento do Centro  Histórico,  eu vou te apresentar um argumento definitivo e derradeiro: consta que quando a primeira pedra foi assentada no chão de terra localizado entre a ruas da Lapa, do Açougue, a Augusta e a Rua da Cadeia, o lendário guitarrista britânico  Keith Richards, tido e havido como O Imortal, esse cara nem tinha nascido.

Norma Bruno

Em 17 de agosto do Ano da Graça de 2023

Dia Nacional do Patrimônio Histórico

Dia do Patrimônio Cultural

* Rua Augusta (João Pinto), Rua do Açougue (Saldanha Marinho), Rua da Lapa (Nunes Machado), Rua da Cadeia (Tiradentes)

Foto: Roney Prazeres – visão do Calçamento Centenário a partir do Casario da Praça XV de Novembro. Centro Histórico – Ilha de Santa Catarina

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