Foi no dia 16 de março de 1983 que o Francolino devolveu ao pó o seu corpo velho e cansado. Morreu “do coração”, disse o médico. E, para quem tanto amou, nem podia ser outra a causa. Foi enterrado no Cemitério das Três Pontes, ao lado de sua amada esposa.
Foi um funeral simples, como simples foi toda a sua vida. Estiveram presentes aqueles que o amaram e foram amados por ele, o povo e os artistas, e ausentes os políticos e as autoridades que não o amaram, nem respeitaram, no que, à bem da verdade, foram intensamente correspondidos. O corpo ele entregou ao pó, já a sua alma…
Há quem diga que subiu ao Céu de mãos dadas com o Menino Jesus acompanhado de uma estranhíssima corte de “anjos de piteira” e uma procissão de bruxas, lobisomens e boitatás em alarido, além de inúmeros cabritos, camelos e galinhas com cabeça de catuto e também pelos espíritos de centenas de rendeiras e pescadores desencarnados.
Muitos confirmam as bruxas, os anjos, as rendeiras e a bicharada toda, com o obstante de que, quem veio buscar o professor foi Nossa Senhora em todo seu esplendor e que o Menino, um pouco mais crescidinho, esse vinha mais atrás amontado no lombo de um camelo.
Dizem até que o que mais se ouvia não era o Coro dos Anjos e Arcanjos, como prometem as Escrituras, mas o riso claro do Menino que se divertia com os sobressaltos do bicho, quando Ele, malininho, arrancava os tufos da barba-de-velho que recobria o animal. Há quem tenha percebido no rosto sereno de Nossa Senhora uma certa parecença com o da D. Beth, patroa do professor, mas não dá pra levar ao pé da letra, porque, nesse quesito, a pessoa não goza de boa fé.
Tem até quem jure de pé junto que o Francolino teria sido pescado por uma vastíssima rede de estrelas lançada pelo próprio Deus-Pai em Primeiríssima Pessoa que, transformando-Se a Si mesmo em humilde pescador, encarregou-se pessoalmente do traslado daquela boa alma.
A verdade verdadeira é que ele não desencarnou, coisíssima nenhuma. Palavra de honra! O professor foi é enraizado na Praça XV no lugar exato onde está a Figueira, transformado em raiz nova da velha árvore por obra e graça do Diviníssimo Filho de Deus que lhe concedeu a realização de três desejos pelos relevantes serviços prestados à Sua Sagrada Família. O professor disse que não precisava, que fez o que fez por amor a Ele, Menino Jesus e também à Virgem Maria e, é claro a São José. O deusinho insistiu, queria retribuir. E tanto fez, tanto fez, que o Francolino finalmente declarou os desejos.
Primeiro, que a beleza e a arte do seu presépio não morressem jamais; segundo, que o esforço dele, Francolino, para preservar a cultura dos antepassados não tivesse sido em vão e, terceiro, que se Deus-Pai não ficasse ofendido, ele, Francolino, preferia ficar aqui na Ilha de Santa Catarina. Se pudesse escolher, queria mesmo é virar poeira no meio da Praça XV. E foi isso que sucedeu. O Jesusinho ressaltando que poderia lhe conceder apenas o terceiro pedido, já que os outros não dependiam Dele, mas sim do povo da Ilha.
Como é que eu sei disso? Pois se eu estava lá, senhora! Foi assim: eu vinha muito bem, muito bem, atravessando a Praça, quando notei um alvoroço perto da Figueira; então me aproximei para descobrir o que estava acontecendo. Foi aí que eu vi o Menininho Jesus descendo do Céu, deitadinho numa nuvem branca ladeada por dois anjinhos barrocos, nuzinhos.
Apesar de que de onde eu estava não deu para ouvir toda conversa, observei que o velho Francolino falava, falava e que o Jesusinho ouvia, ouvia, com atenção. No final, o Menino sorriu docemente e fez com a cabeça que sim. Foi aí que, assim, do nada, senhora!, apareceu um bando de querubins e serafins, iguais àqueles que o Professor fazia, que foram pousando, um a um, em volta dele, o Professor. De repente, o velho começou a rodopiar que nem pião e os pés dele foram se enfiando terra adentro até a cabeça sumir de vez. Quando a poeirada abaixou, ainda deu pra ver um tremor no tronco da Figueira. Vento Sul não foi, nem lestada, porque estava tudo parado. Acho que era ele se instalando!
Eu estava lá, ninguém me contou. E, pra me aprecatar de que alguém me alcunhasse de mentirosa, que nessa terra tem muita maledicênça, sem que ninguém apercebesse, eu fui chegando, pé ante pé, até ficar bem pertinho do Menino Jesus e arranquei um pedacinho da nuvem. Tá duvidando? Vamos lá em casa que eu te mostro!
“Boneco” de Franklin Cascaes, obra da ceramista Osmarina Villalva, de Florianópolis, SC.
Nascido no dia 16 de outubro de 1908 no bairro Itaguaçu, área continental da cidade, Franklin Joaquim Cascaes foi o mais importante estudioso da cultura popular da Ilha de Santa Catarina e um dos mais relevantes artistas populares do País. Morreu pobre, apesar da riqueza da sua obra.
Criado na roça, mas a beira do mar, Cascaes viveu uma infância de extrema simplicidade, porém de “muita fartura”, como costumava salientar. A família era proprietária de muitas terras e de uma “pequena fazenda”, onde “havia dois engenhos de farinha e um terceiro de açúcar. Tinha também uma pequena charqueada, pesca” .
Alfabetizado apenas na idade adulta por restrição do pai que preferia vê-lo cuidando da propriedade, desde menino Cascaes gostou de desenhar e de conversar com as pessoas, especialmente os “jornaleiros”, como eram chamados os trabalhadores contratados por empreitada – jornada, na linguagem da época -, para o plantio da “mandioca, do feijão e da cana”; para o processamento da farinha – a farinhada -, e do açúcar.
Nessas conversas, o jovem Franklin ouvia “estórias” fantásticas sobre mulheres e homens que se transfiguravam nas noites de lua, de crianças que definhavam até a morte, o sangue bebido por bruxas na escuridão da noite, e também de fatos inusitados como canoas que “avoam”, de águas domesticadas pelo uso e raízes de mandioca tão grandes que abrigam pessoas no seu interior. Cascaes registrava tudo.
Com o tempo essa passou a ser sua ocupação permanente, como atestam suas incursões pelo interior da Ilha recolhendo e registrando em letras, desenhos e esculturas as histórias bruxas, lobisomens e boitatás, as soluções e simpatias – a medicina prática dos ilhéus -, a técnica de construir canoas e engenhos, a culinária, a linguagem, os costumes, os folguedos infantis, as rezas e os ritos de Vida e Morte remanescentes dos açorianos, um trabalho que ele empreendeu aos trinta e oito anos e realizou por sua conta e risco ao longo da vida, sem outra intenção a não ser preservar as lembranças do tempo passado, a memória dos ancestrais. Cascaes criou também o Presépio Natural e deu início à tradição do Presépio da Praça XV já comentado aqui no blog.
No dia em que se registra o aniversário de sua morte, o nosso mais profundo agradecimento e o desejo de que Deus o tenha na palma da Mão!
*para saber mais: Cascaes, Franklin. Vida e Arte e a Colonização Açoriana. Org. Raimundo C. Caruso. Florianópolis. Editora da Universidade Federal de Santa Catarina, 1981.