A Propósito do Dia de Finados

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No retorno do Direto do Campo, passávamos, eu e a Filha, em frente ao Cemitério Jardim da Paz.  Falei, meio de “si para si”: – Preciso comprar as flores da Vovó e do Vovô para o Dia dos Finados.

Mãe, não conta comigo pra fazer isso por ti, tá?

E quem disse que eu estou contando? Por que que tu achas que eu quero ser cremada? (Pura chantagem, nem é por isso). A única coisa que eu exijo de vocês é que dividam o pozinho em três partes e joguem em lugares diferentes. Não é pedir muito, é? Cada um escolhe: um punhadinho de cima da Ponte Velha, um punhadinho na Lagoa da Conceição e o restinho no Ribeirão da Ilha.  

A Filha: – Tá, e tu achas que vai ter pra isso tudo?

Acho que dá. Pelos menos  três papelotes dá.  Ato contínuo: – O problema vai ser se pegarem vocês numa blitz! (Preocupação de mãe).

Diz a Filha insensível: – Qualquer coisa eu digo que é pra consumo próprio!

E dizer que arrisquei a minha vida pra essa rapariga nascer!

 

Ao Vento Retornarás!

Aos que me amam, declaro:

Quando eu morrer, doem tudo o que possa ser reaproveitado. Deve sobrar pouca coisa, dada a minha pouca estatura, mas, o que sobrar, lancem ao fogo (peço apenas que se certifiquem de que morri mesmo, por gentileza). Minhas cinzas lancem-nas, se possível, de cima da Ponte Hercílio Luz em dia de Vento Sul (sempre tive atração pelas narrativas de gente que enlouquece e se “joga da Ponte”).  Se puderem, digam as seguintes palavras:

Vai, Norma Bruno, volta pra Casa!

Estarei bem, eu que sempre vivi a três palmos do chão.

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P.S.: melhor verificarem para que lado sopra o vento, pois correm o risco de me trazerem de volta pra casa. Nos cabelos. (Aviso: eu vou morrer de rir!).

Do livro Prosa Quase Poesia – ou vice-verso. Tempo Editorial, 2015

Foto: Carlos Amorim

Ao Vento Retornarás!

Tronco de árvore texturaAos que me amam, declaro:

Quando eu morrer, doem, de mim, tudo o que possa ser reaproveitado (não deve sobrar muita coisa). O resto lancem ao fogo (peço apenas que se certifiquem de que morri mesmo, por gentileza).

As cinzas lancem ao Vento, se possível, de cima da Ponte Hercílio Luz, num dia de Vento Sul. Tenho atração pelas histórias de gente que endoida e se “joga da Ponte”. Se puderem, digam as seguintes palavras: – Vai Norma Bruno, volta pra Casa!

Estarei feliz. Eu, que sempre vivi a três palmos do chão!

Pelo Dia das Almas!

A pé na Ponte

Flávio José Cardozo

A Ponte, a gente… Nos ermos da minha aldeia, falava-se que na capital havia uma ponte de ferro que atravessava o mar. Como não conhecia o mar (constava apenas que era uma água sem fim), eu imaginava a Ponte como um mágico travessão entre o nosso mundo e um enigma chamado ilha. Ouvi depois vozes irônicas dizerem que ela ligava o nada a coisa alguma. De todo modo, por longo tempo vivi a impaciência de vê-la.

Já falei um dia da pena que tenho dos que nasceram à beira-mar: eles não provaram a inexprimível sensação de descobrir o mar. De minha mulher, coitadinha, a pena é dupla: não apenas nasceu à beira-mar como nasceu bem diante da Ponte, cresceu vendo-a todos os dias, nunca soube o que é conhecer um mito desses aos treze, catorze anos, como se deu comigo. Foi, sim, uma tarde única. Boquiaberto sob as inquietantes colunas, tolo diante dos potentosos elos e correntes, temeroso com a água entrevista pelo vão das tábuas – vencer a Ponte naquele primeiro dia foi como ir à África.

Vou andar a pé pela Ponte, é só uma questãozinha de organização do tempo – e é preciso que esse tempo não seja avaro, se solte em longas demoras. O olhar não pode se incomodar com as manchas dos prédios ou com quaisquer outras manchas na paisagem: o supremo prazer será pegar na saída um poente do mais puro outro catarina. A pé, curtindo cada passo, com a ternura de quem não pisa mas afaga, vou cuidar de ver se amiúdo uma amizade que já não vem sem tempo.

Fique a Ponte, pelos séculos que hão de vir, para os pedestres, as bicicletas, as carrocinhas que ainda andam pelo mundo espalhando a repousada beleza das coisas simples.

Do livro Senhora do Meu Desterro. Florianópolis. Lunardelli : Fundação Franklin Cascaes,  1991.

O Aniversário da Velha Senhora

 Por Luiz Carlos Amorim – Escritor – Http://luizcarlosamorim.blogspot.com

      Está de aniversário a velha senhora, no dia 13 de maio. Não sei se comemorarão muito o aniversário dela, pois mais de oitenta anos de vida é um marco significativo. Mas deveriam. Sua comunidade – as pessoas que vivem na cidade a qual serviu, até que foi aposentada, aos cinqüenta e seis anos – deveria festejar-lhe a longevidade. Parece pouco, parece ter se aposentado ainda jovem, mas trabalhou muito a velha senhora, dando passagem ao seu povo, ao progresso, facilitando as idas e vindas do continente para a ilha e vice-versa.

            Velha senhora que, apesar de aposentada, continua servindo, posando como principal cartão postal da capital de Santa Catarina. Triste e melancólica, a dama de ferro passa por mais uma operação plástica, mais uma cirurgia para poder receber, no futuro, os caminhantes da sua cidade. Sim, os caminhantes, pois ela está muito cansada, a idade lhe pesa e não pode mais suportar veículos, os automóveis, caminhões, ônibus, nem pensar. Depois de concluída a série de cirurgias que vem sofrendo ao longo do tempo, quem sabe, pode até acolher o metrô de superfície que cogitam implantar para passar sobre ela, quem sabe?

            Mas continua imponente e majestosa de qualquer ponto da cidade que domina, a velha senhora mais bela da capital catarinense.

            Presto homenagem a você, velha senhora, em nome de todos aqueles que vivem na nossa bela Florianópolis, e quero que saiba que entendo a sua melancolia, você que nos deu passagem por mais de meio século por seus braços estendidos sobre o mar, um do lado do continente e o outro do lado da Ilha de Santa Catarina. Sentimos falta de caminhar sobre o seu peito protetor, a nos dar segurança para chegarmos ao outro lado. As pontes de concreto que se perfilaram ao seu lado não têm a beleza e o carisma que você tem. Sabemos que já trabalhou demais, que merece a sua aposentadoria, mas está tão bela e sua solidão é tão dolorida que sonhamos ser acolhidos em teu seio novamente. Enquanto estiver assim, altaneira e soberana, teremos esperança. Sabemos que lhe são incômodas as cirurgias contínuas que sofre e pedimos perdão por isso, mas é para devolver-lhe a saúde e poder mostrar que é a velha senhora mais forte que todos conhecemos.

            Parabéns, Ponte Hercílio Luz, patrimônio da Santa e bela Catarina, pelos seus oitenta e tantos anos. Esperamos que possamos comemorar muitos outros aniversários e, quem sabe, num futuro próximo, no meio dos seus longos braços abertos.

            Você, que é patrimônio histórico e artístico de nossa terra, mas mais do que isso, é patrimônio do coração de todos nós.

Ponte Hercílio Luz em seus primórdios.  Observe-se a convivência dos diversos meios de locomoção: em primeiro plano, o “Carro de Cavalos” tão popular na Ilha até meados dos anos 60, ao lado, carros de passeio – uma novidade -, estacionados na cabeceira da Ponte, na passarela, pessoas transitam a pé e, ao fundo, os navios do Hoepcke abrigados no Estaleiro Rita Maria.

Foto: Acervo Rogério Santana. Sem data.

A Revolução de 30 e o Caso do Soldado que Caiu da Ponte e não Morreu

Eis que esta semana encontrei o seo Jardim na banca de revistas. Amigo do meu pai, uma amizade iniciada ambos já idosos, seo Jardim tem um hobby interessante: coleciona recortes de jornal sobre a história e o patrimônio cultural da Ilha de Santa Catarina, o que sempre rende bom papo cada vez que nos encontramos.

Conversa vai, conversa vem, chegamos ao tema do momento: a preservação da Ponte Hercílio Luz. Contei a ele sobre o meu propósito de coletar e publicar “estórias” sobre a Ponte e lhe perguntei se tinha algum causo para me contar. Ele, então, me veio com esta preciosidade: – Durante a Revolução de 30, um oficial caiu da Ponte, mas não morreu. Tenho tudo lá em casa, nome, data, num livro da Polícia, deixo pra ti na Gráfica. (Costumamos deixar coisas um para o outro, aos cuidados de um funcionário, na gráfica que frequentamos).  À tarde me ligaram: – D. Norma, o seo Jardim deixou uma sacola aqui pra senhora.

O pacote continha dois álbuns, um sobre a construção e o vai não vai da recuperação da Hercílio Luz, e outro sobre o Mercado Público, o primeiro, o atual, o incêndio, tudo, e a Penitenciária do Estado, construção, ampliação, oficinas. Junto veio também o livro que relata o tal incidente:

“Desde o dia 20 de outubro, quando os revolucionários atingiram a região de Florianópolis, não mais foi possível repouso para os que defendiam a sede do Governo e isto porque além das missões militares, o já escasso pessoal da Força Pública era obrigado a exercer severa vigilância nos edifícios públicos, logradouros principais, residências particulares e pontos vulneráveis da cidade para evitar atividades de marginais e desordeiros, pois com o movimento de tropas, tiroteios e bombardeios pela artilharia naval, a população civil, atemorizada, retirou-se quase em massa para o interior da Ilha, deixando as residências abandonadas.

 (…) a situação na Capital do Estado era tão confusa, sobretudo no dia 24, ao ponto de ninguém fora da área governamental superior ter conhecimento de haver o Presidente do Estado Dr. Fúlvio Aducci, com as notícias de deposição de Washington Luiz, abandonado o Palácio após haver entregue o Governo a uma Junta Governamental Provisória e com seu secretariado embarcado em um ‘ITA’ (…) rumo à Capital Federal (…).

A tropa da Força Pública que defendia a cabeceira da ponte ‘Hercílio Luz’, em conseqüência desses fatos lamentáveis, foi a última força a depor as armas em todo o território brasileiro (…). O Sr. Pedro Augusto Carneiro da Cunha, Diretor do Tesouro do Estado e o Major Adelino Marcelino de Souza, Cmt. Do 1º BI (…) aceitaram a difícil missão de parlamentarem com o Gal. Ptolomeu de Assis Brasil, Cel. Plínio Alves e o Dr. Nereu Ramos, este líder da Revolução em Santa Catarina. (…) teriam os dois emissários, não sem risco de vida, que transpor a ponte ‘Hercílio Luz’, passando por sobre as vigas de ferro de pequena espessura, um vão de mais de 10 metros com luz tênue de lanternas rudimentares. E esse perigo ficou comprovado no instante mesmo em que os dois emissários haviam transposto o abismo, pois o Tenente Heitor Atayde da Força Pública que teimara em acompanhar os mesmos, não conseguiu equilibrar-se na viga, caindo no mar de uma altura de trinta e três metros, salvando-se por milagre” (pág. 96 a 99).

Dizem os antigos que os ilhéus retiraram os pranchões de madeira do piso da Ponte para impedir o avanço das tropas revolucionárias, o que justificaria o “vão” entre as vigas que provocou a queda do Tenente. Quanto ao milagroso salvamento, para o seo Jardim, a explicação é simples: naquele momento, o Tenente Atayde usava uma capa-ponche que amorteceu a queda fazendo o papel de pára-quedas. Se foi ou se não foi, é isso o que o povo conta. E quem sou eu pra duvidar?

* Seo Aulo Gomes Jardim tem 81 anos e gosta de uma boa prosa. Possui mais de 80 álbuns com fotos e recortes de jornal sobre Florianópolis. Mora no bairro Trindade onde cultiva orquídeas e amigos.

Para saber mais:

Ribas, Antônio de Lara – Polícia Militar de Santa Catarina Ação de Guerra dos Batalhões de Infantaria Período de 1922 a 1930. IOESC Florianópolis, 1985.

A Primeira Vez sobre a Ponte

Muito interessante que a ponte Hercílio Luz seja um ícone no mundo onírico também do Vinícius. Quando eu tinha 9 anos, portanto, há exatos 50, passei pela primeira vez, dentro de um ônibus sobre a ponte. Lembro nitidamente, pois desde a Laguna eu vinha tentando imaginar como seria aquela travessia primeira. O que ficou foi, na memória auditiva, o som do assoalho de madeira sob as rodas do busão em que íamos. De fato a ponte significava ir até a Capital, o que correspondia a um privilégio para mim naquela tenra idade. Parabéns à Norma que abre aqui um fórum afetivo cujo tema é a ponte.

Fátima de Laguna

Foto: Ponte Hercílio Luz de autoria de Maria de Fátima Barreto Michels.

* Maria de Fátima Barreto Michels é fotógrafa amadora, contista e poeta de mão cheia. Participou de algumas coletâneas, mas publica seus escritos preferencialmente na web, apesar da insistência dos amigos para que (se) lance (com) seu livro. Reside em Laguna, mas tem uma queda por Florianópolis.

A Ponte Hercílio Luz e o Pesadelo do Menino Vinícius

Quando eu era criança tive um pesadelo do qual nunca esqueci. Eu estudava no Coração de Jesus e sonhei que fazíamos um passeio com a turma justamente na Ponte Hercílio Luz. Meus colegas (eram várias turmas), e as professoras seguiam na frente. Eu ia um pouco mais atrás com a minha professora. A certa altura, os trilhos de madeira começaram a cair bem na minha frente. Vi meus amigos e várias professoras caindo.

Eu tentava escapar, saltando de tábua em tábua, e ao mesmo tempo tentava ajudá-los, mas era em vão. Fiquei nessa agonia até que acordei. Jamais esqueci esse sonho. Eu devia ter menos de oito anos, veja só! Taí a minha história. Um dia, talvez, eu a transforme num conto, mas te deixo à vontade para fazer o mesmo.

Beijo grande do Vini.

* Vinícius Alves nasceu em Florianópolis. É escritor, poeta, editor e boa praça. Escreveu Olho e Fôlego e traduziu Edward Lear Um Livro de Nonsense, ambos editados pela Bernúncia, sua própria editora. Para conhecer sua prosa, visite: olhoefolego.blospot.com

Eu, Meu Pai, Nosso Carro Velho e a Ponte Hercílio Luz

(da série porque a Ponte não pode cair)

Até os sete anos morei num lindo chalé no bairro Saco dos Limões. Já falei sobre isso. Ao entrar em idade escolar – sou do tempo em que não havia “jardinzinho” -, minha mãe inventou de me matricular no Colégio Nossa Senhora de Fátima, localizado perto da casa da minha avó, no Estreito, parte continental da cidade. Anos depois ela confessou tratar-se de uma estratégia para se mudar para lá.

Daí então que, dos sete aos nove anos e de segunda a sexta, eu morava na casa da Vó Chica. Nos finais de semana voltava para minha casa. Meu pai me pegava depois do trabalho e me trazia de volta no domingo à tardinha. Nesse dia, minha mãe e meus dois irmãos vinham também aproveitando para dar uma “voltinha” no nosso velho Hillmann de cor creme.

Certo dia, não sei porque cargas d’água, meu pai não pode me levar no domingo. Saímos então na segunda-feira bem cedinho para que ele pudesse ir até o Estreito e retornar a tempo de cumprir o expediente na Rádio Diário da Manhã. Pois muito bem.

Deu tudo errado. Mal entramos na Ponte, o Hillmann, que de vez em quando nos deixava na mão, começou a ratear. Meu pai encostou o carro, o mais que deu, abriu o capô para ver o que podia fazer, mas não descobriu o defeito. Dois moços que caminhavam pela lateral da Ponte empurraram o carro de ré até a cabeceira insular, que estava mais próxima. Eu, dentro do carro sem entender coisa alguma.

A Ponte ainda tinha o assoalho de trilhos de madeira do projeto original. Se saísse do trilho, o veículo teria que continuar assim até o fim sob pena de tombar. Meu pai estacionou o Hillmann no Belvedere, mandou que eu pegasse minhas coisas e saísse. Obedeci sem coragem de perguntar o que viria a seguir; meu pai ficava nervoso nessas horas. Ele pegou-me pela mão e caminhou em direção à Ponte. Entrou decidido na passarela lateral. Eu entrei porque não tinha escolha.

A passarela era (ainda é?) feita de mourões enfileirados numa distância entre cinco a dez centímetros, espaço que aos meus olhos de criança se alargava. Eu titubeava e meu pai me segurava ainda mais firme. De repente, parou.

À nossa frente um trecho onde faltavam duas ou três tábuas alternadas (já naquela época a Hercílio Luz era tratada com descuido), era preciso pisar com atenção. Meu pai apoiou-se na balaustrada de ferro, sua mão apertando a minha a ponto de me machucar. Ele ordenou: – Não olha pra baixo! Foi o mesmo que mandar olhar.  Dava pra ver as águas profundas cor de esmeralda, lá embaixo. Era assustador! E lindo!

Refeitos do susto, passamos a usufruir a belíssima paisagem e a leve brisa que nos acompanhava na travessia. Caminhamos até a casa da minha avó nas proximidades da Igreja Matriz – é um bom trecho -, pois, para mais ajudar, não passou um único ônibus por nós. Resultado: eu perdi a escola e o meu pai o dia de trabalho já que ele ainda teria que arranjar alguém para rebocar o carro e levá-lo para a oficina; isso a pé, coitado. Hoje a gente resolve tudo pelo celular e ainda reclama!

No dia seguinte levei uma anotação para a escola explicando o motivo da minha ausência. Diante da turma, a professora quis saber o que havia acontecido e eu contei a aventura em todos os seus detalhes. Principalmente como quase caí da Ponte Hercílio Luz, ao pisar numa tábua solta, ficando com uma perna pendurada. Sorte que o meu pai me segurou! Não fosse por ele…

Foto: Ponte Hercílio Luz. Décda de 1960.  Arquivo Rogério Santana foto captada da internet. Observe os trilhos de madeira e a passarela para caminhantes à esquerda.

Esta crônica está publicada no livro Cenas Urbanas e Outras Nem Tanto. Bernúncia Editora. Florianópolis, 2012.

O Jobe, a Conceição e a Ponte Hercílio Luz

Monumento em Homenagem ao Governador Hercílio Luz tendo ao fundo a Ponte
Foto: Carlos Roberto Amorim

O Jobe e a Conceição eram como a corda e caçamba, o Romeu e a Julieta, O Charles e a Camila, a Minerva e o Joaquim. Moravam numa casinha pobre embaixo da Ponte.

Naquele tempo, morar embaixo da Ponte significava morar próximo às salgas de pescado localizadas sob os seus pilares, na cabeceira continental.  Era morada de gente pobre, sem dúvida, mas de gente trabalhadora, que aqueles eram outros tempos.

A Ponte também não era uma qualquer. Ela era única numa Florianópolis provinciana, uma obra de arte a ligar a Ilha ao resto do mundo, por isso era conhecida como a Ponte. Com o tempo passou a ser chamada de Ponte Velha para diferenciá-la da Ponte Nova feita de concreto, pragmática, cartesiana e feia. Antes, só dava ela e por ali transitavam todos, de carro, de ônibus ou a pé. É o que fazia Aurelina, aquela que viria a ser minha mãe.

Quando jovem, Aurelina atravessava a Ponte a pé, a caminho da Fábrica de Bordados onde, moça bonita e caprichosa, recortava os bordados que iam adornar os enxovais das moças de família do Rio de Janeiro e de outras cidades brasileiras.

Diz ela que encontrava o Jobe na travessia da Ponte todos os dias. Na época ele ainda não tinha a Conceição – mas já tava aluado -; certo dia, ele lhe disse assim: – Ô galega! Eu gosto de ti! Agora eu vou melhorar de vida, que o seo Deba vai me dar um aumento, aí eu vou casar contigo. O seo Deba era o poderoso “Dr. Aderbal” a velha raposa, o mandachuva da província.

Não sei se ele, afinal, ganhou o aumento. O que sei é que quem casou com a galega foi o Lourival, meu pai. O Jobe ficou com a Conceição e foram morar na tal casinha debaixo da Ponte. Todos os dias os dois atravessavam a Ponte para almoçar no Mercado Público onde pediam um prato feito e dôj galfo. Comiam juntos, no mesmo prato, em comunhão.

(contra os que querem derrubar a Ponte, a resistência que me cabe)

Norma Bruno

Esta crônica está publicada no livro Cenas Urbanas e Outras Nem Tanto. Bernúncia Editora. Florianópolis, 2012.

Vozes Dissonantes: o Discurso dos Cidadãos

 Creio que o velho Trapiche foi demolido também porque sua presença remetia à lembrança incômoda de um passado de estagnação econômica que a cidade se esforçava por ultrapassar e esquecer. O Miramar remetia à Florianópolis marítima, provinciana e estagnada. Já o aterro remetia à Florianópolis moderna, desenvolvida e próspera que se desejava ver nascer. Remover o Miramar significava renegar esse passado.

O colunista Beto Stodieck, demonstrando um espírito cosmopolita e visionário, fez da sua coluna no jornal O Estado uma tribuna em defesa do Miramar, como de resto de todo patrimônio arquitetônico da Cidade. Na edição de 18/09/1974 (pág. 16), por exemplo, ele acusava o descaso com o Trapiche Miramar como também com o da Praia de Fora que se localizava na altura da Praça Lauro Müller, nas imediações do atual Shopping Beira Mar. No dia seguinte, a coluna reiterava o protesto:

“Enquanto Florianópolis perde o seu encantador Miramar e o cheiroso ‘mictório público’ (…) destruindo assim duas de suas marcas registradas, Laguna dá um exemplo de consciência histórica, tombando 90% do seu centro”.(Jornal O Estado, Coluna Beto Stodieck, ed. 19/09/1974, pág. 12).

Em 20/09/1974 (pág. 12), Beto desafiaria o Prefeito Newton Severo da Costa a tombar o Miramar e o Mictório Público e a recuperar todo o casario da Rua Conselheiro Mafra e pintá-lo de cores fortes. E, no dia 05 de outubro de 1974, voltaria a insistir:

“O Miramar continua de pé. Ainda é tempo de salvá-lo. Quantas coisas poderiam ser feitas: uma central de informações turísticas; um museu; um simples monumento ao mar que ali existiu. Todos ganhariam com isso. Todos”.

Mas na edição de 18/09/1974 o mesmo  jornal estampava um editorial melancólico e derrotado desde o título: “Trapiche: em breve uma saudade

“Agora com a construção da nova ponte e seus acessos, o trapiche da Baía Sul deve ser demolido. A data ainda é incerta, mas parece ser para breve. Aos poucos, as antigas lembranças da antiga Desterro vão sendo destruídas. Quanto ao trapiche, o abandono veio com uma ponte e a demolição com outra. Em pouco tempo, Florianópolis será uma cidade moderna, com grandes edifícios, ruas largas, sistemas viários, e só”.

Enquanto isso, e ainda que se revelasse um esforço infrutífero, nas ondas do rádio outra voz se erguia em defesa da preservação do velho Trapiche. A voz inconfundível do jornalista Adolfo Ziguelli, a quem coube anunciar o “tombamento” do Miramar num contundente discurso:

Ontem à tarde morreu o Miramar, ainda bem que lhe pouparam a agonia das mortes dolorosas e lhe desfecharam um golpe só, rápido e certeiro. O progresso matou o Miramar. Foi em nome dessa palavra mística incorporada ao pensamento médio vigente que o Miramar tombou, sem um gemido e sem protesto, destroçado pela máquina. Sobre as areias conspurcadas do aterro espalharam-se os restos do seu corpo esquartejado sem que ao menos as antigas águas amigas lhe lambessem as feridas sangrentas. (…) nenhuma lápide, nenhuma inscrição, ontem morreu o último símbolo da Ilha”.

(Transcrição da locução do jornalista Adolfo Ziguelli. In: ‘Informe Confidencial’ Programa Vanguarda: 25/10/1974. Fonte Arquivo Zininho – Casa da Memória – FFC apud Adolfo Nicolich da Silva, 1999, pág. 27).

Diante do fato consumado, ficou o enorme vazio. Três dias depois, Beto Stodieck lamentava:

“Florianópolis esta semana sofreu um abalo irreparável. Todos nós sofremos. Foi quando um enorme trator investiu contra o Miramar, o velho Trapiche (…) onde nossos avós tomavam a lancha Zuri para ir ao Streitcho. Nesse momento ficou perfeitamente claro o nível intelectual daqueles que teriam a obrigação de zelar pela nossa cidade. O Miramar foi parte inseparável da Ilha durante muitas décadas. E seu sacrifício foi a coisa mais inglória e inútil que já fizeram contra Florianópolis (…). Quando é que as pessoas vão começar a entender que o ‘progresso’ não é nada disso que estão pensando? Auto-pistas e arranha-céus? Hoje todo mundo está sentindo falta. É só passar por ali e sentir um vazio terrível. Um vazio que aumentará se a sanha demolidora de alguns conseguir seu intento de destruir o Mictório Público pela vaga razão de que não foi tombado como monumento histórico por nenhuma burocrática e sonolenta repartição pública”.

(Jornal O Estado, edição de 27/10/1974, pág. 19)

Não lembro onde eu estava e nem o que estava fazendo na tarde do dia 24 de outubro de 1974. O que sei é que eu tinha vinte anos e que estava muito ocupada com as descobertas da vida. Mas, há muito tempo me sinto culpada por não ter reagido, nem protestado diante da ameaça de destruição, afinal, eu gostava muito do Miramar. E, ainda que a intenção tenha sido boa, não posso ver aquele monumento (a lápide) que puseram em seu lugar.

Tenho, em minha casa, um pé de mesa do velho Miramar – tripé de ferro fundido e estrutura em madeira de lei, maciça, apenas o tampo de mármore não é original – adquirida de uma amiga cujo pai foi o último arrendatário do bar e olho para ela como a uma relíquia. Também tenho “seu retrato na parede” e, como no coração do Poeta, em mim também dói.

Por isso falo do Miramar; para me redimir, para não deixar que ele caia no esquecimento, para não me deixar persuadir pelos discursos como os que, hoje, desqualificam a Ponte Hercílio Luz e sugerem a sua demolição e a construção de uma réplica útil em seu lugar (que Deus me conceda uma boa morte antes que isso aconteça!).

A lembrança daquele prédio elegante banhado pelas águas da Baía Sul – se fechar os olhos ainda posso sentir o cheiro bom da maresia e o Vento Sul desmanchando meus cabelos – me permite reconstruir as bases da minha identificação com a minha cidade. Minha velha árvore, minha aldeia.

Vista interna do pavilhão do Trapiche Miramar em 1973 com o mar já aterrado. Foto: Acervo de Gilberto Silveira. fonte: internet

 Leituras de Referência para este artigo:

Silva, Adolfo Nicolichi. Ruas de Florianópolis. Resenha Histórica. Florianópolis. Fundação Franklin Cascaes, 1999.

Jornal O Estado edições referidas. Florianópolis. SC

 

 

 

 

 

 

 

O Fim do Velho Trapiche

Visão lateral do pavilhão do Miramar vendo-se em primeiro plano o que restava do mar em 1972. Foto do acervo de Gilberto Silveira. Fonte: internet

“ À pergunta: Por que a construção de Tecla prolonga-se por tanto tempo?

– Para que não comece a destruição”.

(Calvino)

Com a popularização do uso dos “carros de praça” e do transporte coletivo – os primeiros ônibus apareceram em 1927, com a Empresa de Ônibus Florianópolis Ltda de propriedade dos Irmãos Atherino” -, a solução na travessia de pessoas e gêneros entre  a Ilha e o Continente foi gradativamente transferida para a Ponte Hercílio Luz.

Inaugurado apenas um ano após a implantação do sistema de transporte coletivo e dois anos após a inauguração da Ponte Hercílio Luz, o Miramar representava a solução antiga e a Ponte a solução moderna para o mesmo problema. Daí que o Miramar já nasceu condenado a perder a sua função original. Por isso, ao longo dos anos, o Miramar virou um terminal rodoviário, uma estrutura que oferecia bar e restaurante aos seus frequentadores. Pouco antes da demolição foi teatro. O Teatro Trapiche. Mas nada disso conseguiu impedir sua condenação e nenhuma alternativa foi pensada para evitar sua demolição. Ao contrário.

Enquanto a Draga Sergipe seguia expulsando o mar para cada vez mais longe, o aterro se transformava num imenso estacionamento, prenúncio do que viria a acontecer na Ilha hoje paralisada pelo excesso de automóveis. Abandonado, o Miramar foi invadido por desocupados, moradores de rua e drogados dando à opinião pública a justificativa do medo e da falta de segurança para avalizar a sua remoção definitiva. A necessidade de construir os acessos à Ponte Colombo Salles oferecia a desculpa técnica. Ponto para o discurso desenvolvimentista.