A Casa, o Frio, a Intimidade

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Gaston Bachelard

Na casa tudo se diferencia, se multiplica. Do inverno, a casa recebe reservas de intimidade, delicadezas de intimidade. No mundo fora da casa, a neve apaga os passos, embaralha os caminhos, abafa os ruídos, mascara as cores. Sente-se em ação uma negação cósmica pela brancura universal. O sonhador da casa sabe tudo disso, sente tudo isso, e pela diminuição do ser do mundo exterior sente um aumento de intensidade de todos os valores da intimidade.

De todas as estações, o inverno é a mais velha. Envelhece lembranças. Remete a um passado longínquo. Sob a neve, a casa é velha. Parece que a casa vive no passado, nos séculos remotos.

‘Eram noites em que, nas velhas casas cercadas de neve e de vento frio, as grandes histórias, as belas lendas que os homens transmitem assumem um sentido concreto e se tornam suscetíveis para quem as penetra, de uma explicação imediata. E foi assim, talvez, que um de nossos ancestrais pode crer no mundo. (…) Parece-me que (sob o manto da vasta chaminé) as velhas lendas deviam ser então muito mais velhas do que são hoje. (…) Quando nossos companheiros de serões partiram com os pés na neve e a cabeça entre as rajadas, parecia-me que iam muito longe, até terras desconhecidas onde habitavam as corujas e os lobos. Eu ficava tentado a gritar-lhes, como tinha lido nos meus primeiros livros de história: ‘Vão com a graça de Deus!’ ‘ (Henri Bachelin citado por Bachelard em A Poética do Espaço).

Frio dos Cornos

Foto: Carlos Amorim
Foto: Carlos Amorim

Por falar em tomar banho em dia de frio, conto-lhes uma clássica crônica familiar:

Meu pai era muito friorento. Magro e calvo, foi privado dos recursos da Natureza para enfrentar os rigores da estação. Minha mãe, ao contrário, nasceu apetrechada. Daí que o seo Lourival tinha que se virar quando os termômetros começavam a cair. E se virava. Duas meias, camiseta, dois casacos e um indefectível cachecol caramelo com um barrado de trama bege da melhor lã inglesa que, por falar nisso, não sei onde foi parar. O homem não esquentava, coitado!, por isso andava sempre com os ombros encolhidos e as mãos cruzadas. De vez em quando estremecia todo e fazia: – Brrrrrr!!! Sabe como?

À noite a coisa piorava, mas ele tinha lá suas estratégias: forrava a cama com jornal, ajustando por cima o lençol e as cobertas. Nossas camas também. Para esquentar os pés, a parte mais dramática, “assava” um tijolo num velho braseiro tipo Gengis Khan – meia hora de grelha, mais ou menos -, enrolava-o primeiro em jornal, depois  numa fronha velha, e colocava-o no pé da cama. Na cabeça um gorro de tricô que minha mãe fez para ele. Era tiro e queda! A cama ficava quentinha – uma delícia! – e, na madrugada, era aquele tal de sair atirando coberta pro lado tanto que aquilo esquentava. O jornal fazia barulho quando a pessoa se virava na cama, era engraçado, e aí a gente se mexia de um lado pro outro fazendo concurso e, em  geral a coisa só terminava quando o pai dava a ordem lá do quarto, a voz cheia de autoridade: – VÃO DORMIR! (risos abafados seguidos do mais absoluto silêncio).

A melhor parte, no entanto, e que já entrou para o anedotário da família, era quando ele chegava na sala todo embrulhado num cobertor, apenas os olhos e o nariz a descoberto, e perguntava para minha mãe que, aninhada conosco sob as cobertas, assistia a novela:

– Mulhé, tu vais me usar hoje?

Ela, que sabia sua parte no enredo, respondia:

– Não.

E ele:

– Então não vou tomar banho hoje não! 

E saía se sacudindo de tanto rir. A gente se sacudia também. A mãe falava rindo:

– Bobo!