Banca de Revistas

Joaquim Correa

Lembro quando minha mãe me deu umas moedas, na década de 70, sem saber quanto valiam, tendo de responder a pergunta dela: comprar uma revista recreio, que naquela época era de um papel mais consistente, cartonado, para recortar e montar algum cenário surpresa ou uma revista de palavras cruzadas da Coquetel, o Picolé. A revista recreio ficou para a próxima vez.

O fato era que vivíamos o tempo em que dizer em casa que ia na banca de revistas era o suficiente, pois todos na família sabiam onde ficava: perto de casa. Sempre tinha uma nas imediações e os donos eram pessoas que nos atendiam sempre bem humorados, mesmo que em uma conversa rápida, sempre sobrava tempo para uma brincadeira verbal que fazia voltar rindo e eles felizes por fazer alguém sorrir.

Os donos de banca não pareciam ricos, mas nem de longe lembravam pessoas que estivessem de mal com a vida.

Meu pai gostava muito do Tio Patinhas e Zé Carioca, mas eu acabava sempre dando um jeito de economizar aquelas moedas para comprar um novo gibi do Thor, o deus do trovão. Porém, ainda fiel aos desafios de caça-palavras, o Picolé, a revista, era sempre o da vez, quando não tinha número novo, então eu começava a estudar qual seria o gibi para não perder a viagem.

Poucos álbuns de figurinhas colecionados, pois naquela época era muito difícil completá-los.

Bancário, meu pai foi funcionário de uma instituição que patrocinou os anos de chumbo, a assinatura da revista Veja era uma imposição do regime, então tenho de confessar que quando tinha os meus nove anos, passava os olhos naquela que me mostraria o universo de Millôr Fernandes, me informando mais sobre o que acontecia nos outros países e pouco sobre nossos milagres econômicos e repressões.

Veio a adolescência, época de comprar revistas com conteúdo adulto, sem muita dificuldade, pois o vendedor da banca já me conhecia e não me perguntava se já tinha dezoito anos. Entre o grupo de amigos, era mais admirado o que tinha tido peito de colar a página central (poster) na porta do armário do quarto, pois era uma forma de mostrar que era peitudo e que a família não se opunha às práticas individuais.

Quando questionado sobre o conteúdo pelas meninas, vinha a clássica resposta: não é pelas fotos, são as reportagens e entrevistas que são de muito bom nível.

Até a metade da década de noventa, era comum termos o prazer de sair de casa num domingo, para comprar um jornal de domingo, pois era para esse dia que tinha sido preparado. Mas já começava a mudar a forma de vendagem, pois em Florianópolis, sábado, após as dez da manhã já havia a edição de sábado e a “gordinha” de domingo, com os jornaleiros dos semáforos. Dava para comprar no intervalo do sinal vermelho sem que o motorista que o seguisse tivesse uma síncope e começasse a buzinar, pois o sinal havia mudado para o verde, visto que ele estava fazendo o mesmo, comprando a edição dele.

Jornal do Brasil me trazia muita informação do mundo cultural que só o Rio de Janeiro tinha, inexplicavelmente Florianópolis desaparecera do mapa entre Curitiba e Porto Alegre. Lembro de ficar babando em inúmeros shows de bandas de rock internacionais que só aconteciam lá.

Folha de São Paulo, na época da universidade era leitura obrigatória, pois trazia um conteúdo político e econômico consistente, que estava mais adequado aos temas abordados por professores que fugiam da alienação de manchetes compradas pelo regime.

Lembro bem de colecionar a Ciência Ilustrada, que abria as portas para a ciência que não era proposta nos bancos acadêmicos, era mais abrangente, internacional, deslumbrante, mas acabou.

Veio a Superinteressante, uma proposta mais descolada de tratar temas polêmicos, mas ainda assim trazia textos bem escritos por profissionais e cientistas da área. Observem o lixo que se transformou quando pensou que a forma impressa poderia imitar a dinâmica da linguagem da internet.

No final da década de noventa, uma grande parte dos conteúdos pagos nas edições impressas de periódicos passou a ser oferecido de graça, como um chamariz, para os portais que reuniam as maiores publicações.

Nascido da fusão da Editora Abril e do Grupo Folha, o UOL se tornou o portal de maior crescimento na época, pois também tinha um grande número de publicações impressas que começaram a migração para o mundo virtual.

Onde estavam as bancas de revistas? No mesmo lugar de sempre, abarrotadas de papel impresso e aguardando o cliente que já não era muito fiel, pois parte do que o fazia ir até em dias de muito frio e chuva comprar o impresso, passou a utilizar o acesso (caro) da internet para ler matérias em tempo real, ao invés de aguardar o dia da publicação mensal.

Mesmo com todo o ritual, da necessidade de manusear o papel e interagir com o texto e a imagem estática, o público que frequentava a banca de revistas já não era mais o mesmo. Tentaram vender publicações com aromas, nas propagandas de perfumaria, mas não foi forte o suficiente para concorrer com o universo multimídia da internet.

Resultado desse movimento é o que vemos, ao caminhar pelo Centro de Florianópolis, com as bancas fechadas, informando que estão atendendo no shopping ou ainda apenas com correntes grossas nos “gritando” que estão “morrendo”.

Os sebos, por sorte, proliferam à margem da tecnologia e mudanças bruscas, mas dependem de nós, os que ainda suspiram quando acariciam uma revista ou livro “inédito” para nós, com o ruído delicioso de cada página virada.

Estaremos próximos da página final deste ícone de nossa infância?

Só o tempo dirá, mas creio que será rápido, não garanto que seja indolor.

A Praça

Banca do seo Arthur Beck.  Foto cedida pelo jornalista  Henrique Ungaretti.
Banca do seo Arthur Beck. Foto cedida pelo jornalista Henrique Ungaretti.

Henrique Ungaretti

Sempre gostei muito de banca de revista. Quando criança consumia a Recreio. Trazia passatempos, figuras para colorir, pontos para ligar. Havia uma revista sobre animais selvagens de fotos muito grandes e detalhadas que meu pai comprava para levar a meu avô quando visitava a Laguna. Eu gostava de ver os bichos. Os gibis não faltavam, é claro. Foi só na adolescência que percebi que ninguém era filho de ninguém em Patópolis. A Disney também publicava uns manuais de capa dura que faziam muito sucesso. Tinha o manual do escoteiro, o manual de bruxaria, o manual do detetive e até o manual do jornalista. Li todos.

A banca de revista só me virou banca de jornal mais tarde. Comecei com O Estadinho, encarte semanal do mais antigo. Certa vez, escrevi um conto sobre insetos que pousavam sobre folhas de árvore como se fosse pista de avião. Foi meu pai quem falou em publicar no suplemento infantil, mas não me lembro se isso aconteceu. D’O Estadinho pulei para a coluna do Beto Stodieck. Aquele era um tempo em que o colunista dava o preço do amor na praça XV e a gente se divertia. Com o Beto de O Estado aprendi a segurar uma folha grande de jornal. Dali, passei às outras seções. A conquista do jornal acompanhava a minha descoberta do mundo. Quando me dei conta, já estava adulto e lia o mais antigo da capa à contracapa.

Jornais e revistas nem sempre foram vendidos em bancas. O pioneiro O Catharinense era vendido em farmácias. A primeira banca de periódicos impressos de Florianópolis teria sido a banca do Beck? O ilhéu costumava comparecer, no final de todas as tardes, à portinha de frente para a praça XV onde se punha à espera da chegada dos jornais do Rio de Janeiro. Na década de 1960, o proprietário, seu Arthur Beck, precisou desocupar o imóvel. O negócio era tão importante que o despejo causou comoção. A Câmara dos Vereadores interveio e a prefeitura permitiu que se instalasse na própria praça.

Alguma coisa se perdeu dos florianopolitanos enquanto a cidade crescia destrambelhada. Alguma coisa também se perdeu de nós na imprensa local. Mas essa é outra conversa. O fato é que não se vende mais amor na praça XV. Nas ruas do Centro, uma sessão de sexo pode custar desde R$ 20 até a própria vida.

Ruazinha perto da Minha Rua

A Ruazinha

Aquilo tudo era uma linda chácara, eu lembro. Eu era jovem e passava por alí de ônibus a caminho da Universidade Federal. Havia uma casa antiga, as paredes caiadas, uma porta e três janelas cor de vinho, a pintura desbotada. E, eternamente sentado na soleira da porta, um homem velho, barbas brancas. Diziam que era doido, que se a gente mexesse com ele, ficava agressivo. Não sei se era mentira ou verdade; recordo-o como uma foto enquadrada na janela do ônibus da Trindadense. Naquela época, não suspeitava que um dia moraria em seus domínios. A vida é engraçada. Imagino que o velho tenha morrido e os herdeiros tenham loteado a chácara em cujas terras foram construídas diversas casas. Num determinado espaço, as casas estabeleceram-se de “comprido”, como diz o povo, criando um beco onde, eu suponho, alojaram-se os parentes: filhos, netos e sobrinhos, lado a lado. Uns foram se mundando – sempre que a gente muda ganha o mundo -, outros foram ficando, ficando… A abertura de vias e estradas próximas mudou o destino do beco ligando-o a duas vias importantes, rua principal e avenida, elevando o seu status para “ruazinha”.  Tem uns cinqüenta metros de extensão a ruazinha e, apesar da mão dupla, nela só passa um carro por vez (azar de quem tiver o carro menor ou estiver mais perto da boca da rua, tem que voltar de ré). Nem sei se tem um nome, mas tem uma praça, pracinha, equivalente a um lote de terra, se muito, nascida da área verde estabelecida em lei. Possui umas tantas árvores velhas remanescentes da antiga chácara e canteiros onde flores teimosas nascem espontaneamente por entre a grama rala e tem também dois bancos como uma praça que se preze, só que esses, são voltados para a rua, contraditoriamente. Cortando a pracinha, um caminho liga uma rua à outra rua, abrindo-se no meio, para contornar uma árvore maior. Na ruazinha mora um homem que diariamente passeia com seu curió, tem mulher que espia na porta, assuntando, tem vizinha no portão conversando com outra vizinha, tem cachorro enfezado que late por obrigação de ofício, tem um homem que canta músicas do Nelson Gonçalves forçando voz de barítono, tem gente que vem, tem gente que vai; eu inclusive. Desde que vim morar aqui, uma coisa me intriga; não sei o que acontece: a despeito da loucura que brutaliza o nosso tempo, a indiferença, o individualismo doentio, a falta de civilidade e a violência, naquela ruazinha as pessoas se olham nos olhos e sorriem e se cumprimentam: – Bom dia, senhor! – Boa tarde, senhora! Eu sorrio e respondo – Bom dia, senhor, bom tarde, senhora!, Fico feliz quando isso acontece e me pergunto: teria a ruazinha, em sua pequenez, o poder de humanizar as pessoas reavivando memórias de vizinhança, bairro, cidade pequena? Hoje, ao cruzar com uma senhora carregada de compras, descobri o segredo. Naquela ruazinha sou eu quem olha as pessoas nos olhos, sou eu quem sorri e quem diz: – Bom dia, senhor! Boa tarde, senhora! É em mim que a ruazinha perto da minha rua reaviva memórias de vizinhança e cidade pequena. É a mim que ela humaniza e salva.