Verônica

Momento emocionante: Verônica canta “Ó vos omini”. Foto: Carlos Amorim

“Em sete passos (estações), Verônica anuncia em tom grave, de forma lenta e solene:  ‘Ó vos ominis qui transit’ (‘Ó vós todos – povo – que passais pela rua. Olhai e vê se a tua dor é semelhante à minha dor’)”. (Moacir Pereira, pg. 40)

Leitura de referência:

Pereira, Moacir. Senhor dos Passos, O Protetor  de Florianópolis. Florianópolis. Insular, 2004.

A Procissão do Encontro

Senhor dos Passos – Procissão do Encontro. Foto: Carlos Amorim

“Quando o andor sobe a Praça XV de Novembro, aproximando-se da Catedral Metropolitana, encontra a imagem de Nossa Senhora das Dores, que desce pela rua Padre Miguelinho. (…) Os sinos dobram. Centenas de pombos sobrevoam a Praça (…). Faz-se o mais absoluto silêncio”. (Moacir Pereira, pág. 61)

Para saber mais, leia:

Pereira, Moacir. Senhor dos Passos, Protetor de Florianópolis.  Florianópolis. Insular, 2004.

S.P.Q.R “Senhor dos Passos Querido Rei”

“Ponto alto da Semana de Passos e da Procissão Dominical que continua atraindo milhares de fiéis às escadarias da Catedral Metropolitana e à área norte da Praça XV de Novembro, o Encontro das imagens do Senhor dos Passos e de Nossa Senhora das Dores produz todos os anos cenários de grande devoção popular.

 (…) O cerimonial tem início com o Guião, o estandarte oficial da Procissão exibido apenas uma vez por ano. Confeccionado em tecido veludo de cor vermelha, tem pingentes dourados que os membros da  Irmandade conduzem dando-lhes direção e maior segurança contra os ventos fortes. Na parte superior quatro letras grandes anunciam: S.P.Q.R., que quer dizer: ‘ Senatus Populus Que Romanus’ (Senado e Povo Romano). O povo fez sua própria leitura: ‘ Senhor dos Passos Querido Rei’ ”. (Moacir Pereira, pg. 47 e 48)

Para saber mais, leia:

Pereira, Moacir – Senhor dos Passos, o Protetor de Florianópolis. Florianópolis. Insular, 2004

Senhor dos Passos Querido Rei. Foto: Carlos Amorim

A Procissão do Senhor Jesus dos Passos

Procissão do Senhor Jesus dos Passos – Um mar de gente. Foto: Carlos Amorim.

Por falar em Senhor dos Passos, eu vou contar uma coisa pra ti: teve um tempo em que as mães desta aldeia faziam promessa de vestir os guris pequenos de senhorzinho dos Passos e, por conta disso, não cortavam os cabelos dos filhos desde que eles nasciam até os três, quatro anos, quando então vestiam os meninos de túnica roxa, colocavam-lhes uma coroa feita de cipó sobre a cabeça e uma cruzinha de madeira nas costas e lá se iam os menininhos em procissão, de mãos dadas com suas mães, acompanhar o Senhor em seu calvário até o encontro com Nossa Senhora, na Catedral.

Na volta, as mulheres cortavam os cabelos dos seus meninos e os depositavam aos pés do Senhor, agradecidas pela graça alcançada, o que podia ir desde a cura do menino desquarado até o pagamento da caderneta na venda ou a proteção do marido embarcado.

Se a precisão era muita e não dava tempo de esperar o cabelo do menino crescer, elas vestiam os anjinhos assim mesmo, nas carrera, e era comum a gente ver essas mulheres encarnando Nossa Senhora, sentadas no meio fio dando de mamar aos seus filhos, de tão pequenos. Depois, lá se iam elas, Pietás em procissão, cada qual carregando nos ombros não mais um senhorzinho dos Passos, mas um Menino Jesus adormecido, e também as cruzes que, no fim das contas, eram delas, não dos seus filhos. Redimida ficava toda a Humanidade pelo sono daqueles anjos vestidos de roxo.

Assim seja!

* Passados 247 anos, a tradição se mantém.

Manezinho da Ilha, Certificado de Origem

De três em três meses vou ao Jardim da Paz renovar as flores do túmulo do meu pai. Os intervalos coincidem com algumas datas significativas. Natal e Dia dos Pais, naturalmente, e também o aniversário de sua morte e o do seu nascimento. Hoje, 24 de março, ele faria 84 anos, então fui até lá, cumprir meu compromisso filial.

Estou sem carro, de modo que tô de ônibus. E, “porque hoje é sábado” e os horários ficam rareados, ao chegar ao Terminal pedi a um senhor de uniforme azul e cabelo pintado de preto, que me indicasse a linha que leva ao Jardim da Paz.  Foi o suficiente. – Morreu alguém da sua família, foi?, a mão já apoiada sobre o meu ombro e o olhar pesaroso (desandei a rir). – Meu pai, eu disse. Há quatro anos! Hoje seria aniversário dele. Vou lá trocar as flores. – Tadinho! Meus pêsames!, disse ele apontando o ônibus linha Saco Grande via João Paulo, parado na plataforma.  Agradeci e me alojei perto da porta. Ele voltou: – A senhora sabe onde fica? O sorriso limitado por dois caninos de ouro.

O ônibus seguiu em direção ao bairro, uma profusão de mansões, casas pequenas, condenadas, espremidas entre os paredões e os prédios em construção que contornam a Baía e o que restou do mangue. Aproximadamente a uns duzentos metros do Jardim da Paz há um ponto de ônibus, de modo que, preparada para descer, puxei a campainha, mas o motorista passou direto. Eu protestei, preocupada em ter que voltar todo aquele trecho a pé. O ônibus parou exatamente em frente ao portão do Cemitério. – Vai lá, vai minha filha! Vai rezar pro teu paizinho! Era o seo Alcebíades, o nome dele, me olhando pelo espelho interno!

É por essas e por outras que eu fico indignada quando alguém diz: – As pessoas daqui são fechadas! Fechadas uma ova! O nativo autêntico, o mané com Certificado de Origem como é o caso do seo Alcebíades, é “dado”, é solícito, é hospitaleiro. Nem bem a pessoa chega à sua casa, ele já sai oferecendo seu café ralo, vai fazendo confidência e, principalmente, já vai especulando tudo sobre a tua vida. Te aprecata!

Nesse tempo em que “Manezinho da Ilha” virou grife e todo mundo se outorga o título de “Mané”, é preciso prestar atenção: a pessoa pode saber falar “olhó lhó!” e te chamar de “quirido”, pode até apresentar a certidão de nascimento, mas… Fez doce ou arregô não é “legito”!

* Alcebíades é nome fictício. Escolhido por aproximação ao verdadeiro nome do dito cujo.

Dos Incontáveis Motivos para Agradecer por Ter Nascido nesta Ilha Abençoada

A Ponte Hercílio Luz, o Senhor dos Passos, o casario, a gente nativa e seu modo peculiar de pensar, de agir e de falar, as “estórias de encantado”, a renda de bilro, a culinária, o mar, o milagre das tainhas, as dunas, o mangue, os morros; dentre os incontáveis motivos que tenho para agradecer a Deus por ter nascido nesta Ilha abençoada, um lugar de destaque cabe à música Rancho de Amor à Ilha, Hino Oficial de Florianópolis.

Tive o privilégio de conhecer e, de certa forma, conviver com o seu compositor, Zininho. Vizinhos no Largo Treze de Maio quando meninos, meu pai e Zininho tornaram-se colegas de trabalho na Rádio Diário da Manhã, ele à frente dos microfones como cantor e radioator e meu pai à frente dos equipamentos como técnico em eletrônica. Por conta disso, volta e meia, lá vinha ele com um gravador para o meu pai consertar em suas raras horas vagas.

Eu olhava para aquele homem com reverência, ele era artista de rádio, conhecia todas as suas músicas, pois ouvíamos muito rádio naquela época; além disso, minha mãe trabalhava cantando e vez em quando cantava as músicas do Zininho, especialmente “A Rosa e o Jasmim”, de que ela gostava. Eu ficava por perto tentando ouvir algum fio da conversa entre ele e meu pai, tinha vontade de lhe dizer que gostava muito das suas músicas, mas não tinha coragem.

Certo dia, o Zininho estava em nossa cozinha conversando com meus pais quando minha irmã entrou correndo. – Volta aqui, minha filha! Dá bom dia pra visita! – Bom dia, disse ela, apressada. Devia ter uns sete, oito anos. Minha mãe a segurou pelo braço: – Rosane, tu conheces aquela música que diz assim ó: “- Um pedacinho de terr...” Nem terminou a frase. – Ui, mãe! Para, para! Eu odeio essa música! E saiu correndo porta afora! Meus pais não sabiam onde se enfiar. Foi quando eu criei coragem e disse: Eu adoro essa música!

Continuo gostando. Um gostar daquele tipo que a pessoa se arrepia e chora quando ouve. Mas, vê se eu não tenho razão!

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Rancho de Amor à Ilha

Um pedacinho de terra,

Perdido no mar!

Num pedacinho de terra,

beleza sem par…

Jamais a natureza

reuniu tanta beleza,

jamais algum poeta

teve tanto para cantar!

Num pedacinho de terra

belezas sem par!

Ilha da moça faceira,

da velha rendeira tradicional,

Ilha da velha Figueira

onde em tarde fagueira

vou ler meu jornal.

Tua lagoa formosa

ternura de rosa

poema ao luar,

cristal onde a lua vaidosa

sestrosa, dengosa

vem se espelhar.

Recado ao Glorioso Senhor Jesus dos Passos

Em 2007, meu pai foi informado de que precisaria fazer uma nova cirurgia cardíaca. Enfartou muito jovem, aos trinta e seis anos, numa época que não havia recursos a não ser rezar. Aos sessenta e dois fez a cirurgia, quatro pontes entre safenas e mamária. – Agora é a válvula que tá ruim, seo Lourival, precisamos operar. Deixamos passar as festas de fim de ano e marcamos em seguida, disse o médico. Estávamos em setembro. Meu pai negociou. – Tudo bem, doutor Frederico, mas com uma condição: eu faço aniversário no dia 24 de março. Eu quero fazer oitenta anos. Se o senhor marcar antes disso eu não venho. Se marcar para o dia seguinte, eu estarei aqui.

A cirurgia ficou marcada para o dia 07 de abril pela manhã. No dia anterior fomos para o Imperial Hospital de Caridade para os procedimentos e providências que antecedem a cirurgia. Mal nos instalamos, meu pai me convidou para irmos à Capela Menino Deus. Queria “conversar” com o Senhor dos Passos. Filho de pai católico fervoroso, membro da Irmandade, e mãe espírita, meu pai era um espírita sui generis; estudioso e praticante da Doutrina Espírita, mas devoto de Santo Antônio e do Senhor dos Passos.

Na saída, ele deixou o seguinte recado no livro de registros que existe na Capela: “Caro Senhor dos Passos, amanhã vou fazer uma cirurgia. Peço-lhe a graça da recuperação da minha saúde e o meu retorno ao seio da minha querida família. Muito obrigado!”, e assinou com sua caligrafia bonita.

À noite, durante a entrevista para verificar o seu estado geral, a enfermeira descobriu que meu pai esquecera de descontinuar o uso do anticoagulante do qual fazia uso regular; havia o risco de hemorragia. A cirurgia foi, então, remarcada para dali a uma semana.

Fizemos tudo de novo. Internação, instalação das coisas no quarto, visita ao Senhor dos Passos, reza e assinatura no livro de pedidos. Dessa vez meu pai escreveu assim: “Caro Senhor dos Passos, cá estou novamente e tu bem sabes o motivo”. Assim era o meu pai.

A cirurgia transcorreu nos conformes e meu pai enfrentou tudo com galhardia, mas, infelizmente, o Senhor dos Passos tinha outros planos para ele.

Histórias de Encantado: O Imperioso Desejo do Senhor Jesus dos Passos

Procissão do Senhor Jesus dos Passos.  Foto: Carlos Amorim

Ainda que tu não acredites nessas histórias de encantado, eu vou te ser sincera: pior que é! Pois se até o Senhor dos Passos que tava indo pro Rio Grande se encantou de morar aqui e, no que inventaram de fazer uma parada pra abastecer o navio, se valeu da ventania como desculpa? Dizem os antigos que, cada vez que o navio se preparava para sair, Ele assoprava uma ventania tão forte, mas tão forte, que o navio não conseguia passar da barra e tinha que voltar pra trás. Foi assim por três vezes até que o povo da aldeia entendeu: Nosso Senhor queria é fincar morada por aqui. E assim foi: – Seja feita a Vossa vontade!

A recém teve aquele incêndio do Hospital de Caridade; pois não é que o fogo começou exatamente ao lado da Capela e atingiu o prédio pela parte de trás e foi queimando tudo e rodeou direitinho o altar de madeira onde estava o Senhor dos Passos sem queimar nem o altar nem a imagem do Santo? Essa ninguém me contou, nega, essa eu vi, com meus próprios olhos. Agora explica!

Soube, pelo meu pai, que o vô Manoel, pai dele, que morava no sopé da ladeira do Caridade, pertencia à Irmandade do Senhor dos Passos e, sendo um marceneiro de mão cheia, meu avô era o restaurador dos altares das antigas igrejas da Ilha, a Igreja de São Francisco, a Igreja do Rosário e a Capela do Menino Deus. Segundo meu pai, por volta de 1945, meu avô foi encarregado de fazer uma nova cruz para o Senhor dos Passos, pois algo acontecera com a original. Segundo ele, é essa cruz que está, até hoje, nos ombros do Filho de Deus. Fiquei orgulhosa!

* O motivo do Senhor dos Passos ser tão amado, além do fato de ser milagroso, é que Ele simpatizou com a nossa cidade e, antes mesmo que a gente gostasse Dele, foi Ele que gostou de nós.

A Cidade como Espaço de Oposição entre o Velho e o Novo

A Desvalorização da Memória  

Houve um tempo em que os objetos eram substituídos exclusivamente por motivo de perda, quebra ou exaustão do material. A Revolução Industrial, no entanto, inventou uma nova “maneira de fazer as coisas”.

Esse novo modus operandi promove a obsolência intencional dos produtos obedecendo a lógica de mercado cuja ordem é propiciar, continuadamente, a realização de novos negócios. Daí que acabamos nos acostumando à “durabilidade” relativa dos produtos e à “necessidade” de sua substituição por um exemplar novo e mais moderno ainda que o anterior esteja em perfeito estado e em pleno funcionamento. Vivemos num mundo de coisas transitórias.

Considere-se ainda o efeito das novas tecnologias da informação que permitem trocas e traslados em tempo mínimo e a influência da publicidade que uniformiza os idiomas, os produtos e as paisagens direcionando nossas preferências e aversões. Como resultado dessa massificação que despersonaliza as pessoas e os lugares, tudo o que é antigo passa a ser visto como desatualizado, atrasado, inadequado e inapropriado, portanto passível de substituição. Termina que, hoje, todos os lugares se parecem.

A noção de globalização traz implícita a desvalorização da Memória. Há, entre ambas, pode-se dizer, uma certa incompatibilidade conceitual que coloca em contradição o velho e o novo, o antigo e o moderno, o local e o global. Some-se a isso o fato de que, em geral, construções e prédios antigos estão localizados nos núcleos de fundação das cidades e suas cercanias, espaços mega valorizados no mercado imobiliário e, portanto, cobiçados pela indústria da construção civil.

A ideologia da renovação e da mudança se traduz, na área da Cultura, em desvalorização do já existente, do que é antigo e do que é local, legitimando a substituição dos equipamentos no espaço urbano. Uma mentalidade particularmente danosa aos edifícios históricos; um campo fértil para o discurso desenvolvimentista.

“Jamais se deve confundir uma cidade com o discurso que a descreve. Contudo, existe uma ligação entre eles”. 

Calvino

Centro de Florianópolis Foto: Carlos Amorim

Leitura de referência para este artigo:

Adams, Betina – Preservação Urbana: gestão e resgate de uma história. Florianópolis. Editora da UFSC, 2002.

Vende-se esta Propiedade

VENDE-SE ESTA PROPIEDADE dizia a tabuleta em grafia peculiar. O forasteiro, arrebatado por tanta beleza, bateu palmas no portão já antevendo a possibilidade de fazer um excelente negócio comprando direto de um manezinho. O nativo espiou da janela afastando a cortina colorida e, sem nem perguntar do que se tratava, gritou: _ Vamu entranu, quiridu, vamu entranu!

Conversa vai, conversa vem, o forasteiro sorvendo o café ralo passado indagorinha, perguntou do preço. O mané, coisa e tali e tali coisa, fez que sim, fez que não, por mim e a mulhé non vendia, que o mô bisavô nasceu aqui, que o mô avô nasceu aqui, que o mô pai nasceu aqui, que uj mô filho maj a mulhé nasceru tudo aqui, que, se dependesse da minha pessoa morria aqui, enrolou, enrolou e por fim deu o preço. O forasteiro sabia que valia, mas disse tá salgado. Pois o amigo que faça a sua prepojta.

Proposta feita, o mané disse que não, que é muito pôco, non dá nem pra dividí o preço du’a janela pra cada filho, que além du maj a propiedade é muito boa, que tem o mari na porta de casa, que tá tudo asfartado, que tem a casa toda arreformada, que tem o terrero grande, que tem uj pé de pitanga e uj pé de café, além duj pé de manga que todo ano ficava carregadinh’ carregadinh’. O forasteiro ficou intrigado. Pé de manga? Carregado? Como se manga é fruta de clima quente e aqui no sul é esse frio de cair neve durante o inverno? O mané tascou-lhe:

_ É qui essa é da modalidade “Manga Comprida”. Táj pensanu c’ô sô tanso di prantá da ôtra?

 Vendo que não ia se criar, o forasteiro tratou de fechar o negócio.

  *(a partir de uma tirada do meu amigo Edson)

Pompa e Circunstância

Vão dizer que isso já virou palhaçada. Esta é a segunda vez que eu me saio com uma história de curió acontecida dentro de ônibus, mas eu juro que é a mais pura verdade. Dessa vez, aconteceu na linha Volta ao Morro Carvoeira, Saída Norte.

Quando entrei, o ônibus estava praticamente vazio. Para fugir do Sol, sentei na poltrona do lado esquerdo, atrás do cercadinho que limita os assentos destinados às senhoras grávidas, aos idosos e deficientes físicos. Em seguida, o ônibus saiu. Naquele ponto do Instituto Estadual de Educação, um homem entrou com uma gaiola na mão. Eu já me aprumei no assento. Esse era bem mais jovem do que aquele e estava vestido direitinho, mas, a exemplo da outra, a gaiola também estava coberta, dessa vez, por uma camiseta. Até aí tudo bem. Havia vários lugares vagos no ônibus, mas o indivíduo entendeu de sentar no tal reservado e se aboletou exatamente no banco em frente ao meu. Eu sorri internamente, pensando: lá vem uma crônica prontinha; é só o trabalho de descrever a cena. Pois não deu outra.

Com “pompa e circunstância” o tal do homem instalou o curió no canto da janela e, espremido, sentou-se no canto do corredor. O povo entrando, que gente brota não se sabe de onde, alunos com suas imensas mochilas, donas-de-casa carregando sacolas do Direto do Campo. Gente alta, gente baixa, gente magra e gente gorda. Todo mundo que entrava, olhava para a gaiola com cara de censura e o homem nem aí. Eu, ouriçada, à espera do desfecho da crônica. Posagora! O meu ponto quase chegando, eu decidida: vou até o fim da linha, mas essa eu não perco.

Nem precisei ir tão longe. No ponto da Praça Celso Ramos uma mulher entrou e já veio com cara de arrenegada. A verdade é que até havia lugar na “cozinha” do ônibus porque muita gente saltou naquele ponto, mas a dita parecia achar que aquilo era uma questão de afirmação da superioridade humana sobre todas as criaturas. Lançou um olhar irônico em volta, como quem diz, “Vocês vão ver, seus tanso”, olhou para o tal do homem e disse cheia de autoridade: “_ ’cença?”.

O homem nem respondeu. Levantou, ergueu a gaiola para a mulher passar, sentou-se e, antes que ela pudesse comemorar, colocou a gaiola sobre o colo, ou melhor, sobre os colos, o dele e o dela. Para não dar o braço a torcer, a tal mulher viajou até a Trindade com o curió no colo. Pelo menos até a minha parada, que o que aconteceu depois eu não vi.

 1 x 0 pro curió. Porque mais do que isso, só se ele pudesse voar livremente.

* os nativos apreciam  muito os “Colerinhas” e também os levam a passear pelas ruas da cidade, mas, sem dúvida, na Ilha o curió é soberano…

Curiós

Foto: Carlos Amorim

(creio que a figura que melhor representa o espírito do nativo não é o pescador, nem tampouco a rendeira. É o homem e seu curió).

Era fim de outono, começo de inverno. O dia amanheceu bonito, mas no final da manhã fechou de repente como resultado de uma frente fria vinda na garupa do vento sul. Eu me dirigia ao Centro, de ônibus. A chuva caiu. Chuva com vento é “fogo-na-rôpa”, não tem escapatória. Não tem sombrinha, casaco, nem cabelo que cumpram sua função. Cada vivente que entrava vinha encharcado e reclamando. O ônibus apinhado e o cobrador pedindo: – Um passinho à frente aí, fazendo favor… (na época entrava-se pela porta de trás, por isso “o passinho à frente”).

De repente, ali na altura do antigo Hospital da Marinha, ele entrou. Eu o conhecia desde os meus quinze anos (lá se vão algumas décadas), quando eu estudava no Coração de Jesus. Era magro, de estatura mediana, o cabelo ralo sempre bem penteado, muito simpático e educado. Todos os dias, na saída do Colégio, depois, é claro, de pentear os cabelos, passar batom e saborear uma bala Pipper, rotina de todas as moças que tinham namorado encostado no muro à espera, eu passava na banca de revistas onde ele trabalhava. Olhava tudo e, quando a mesada permitia, até comprava alguma coisa, mas ele não se importava com isso e sempre puxava um dedo de prosa.

Entrou no ônibus encharcado, desgrenhado, tiritando de frio, os lábios roxos, o pouco cabelo escorrendo água. Chamava a atenção o fato de estar só de camiseta, os pêlos das axilas à mostra, daquelas que os velhinhos usam por baixo da roupa “pra proteger o peito da friaj”. Todos olhavam, uns descaradamente, outros de soslaio, o detalhe insuspeitado. Na mão, ele trazia uma gaiola protegida da chuva e do vento por um blusão de lã. Pensei: – Aí está. Um homem e seu curió! Ali, para quem quisesse ver, sem necessidade de uma única palavra, a imagem acabada do cuidado amoroso. Aquela cena o absolvia, de antemão, de toda e qualquer culpa pelo cárcere privado fosse o tribunal de Deus ou dos homens.

Naquele momento compreendi que existem coisas que transcendem nossa noção de certo e de errado, independendo de onde estamos observando e do que trazemos no farnel, na trouxa, no balaio de nossas vivências e saberes. Fiquei enternecida e grata pela lição. Ainda fico.

Crônica publicada no livro A Minha Aldeia (Editora Papa-Livro, 2004). Versão reduzida.