No Dia dos Mortos, aos Costumes!

Anjo de Cemitério

Véspera de Finados, fui aos costumes.  Nem bem desci do táxi uma moça se aproximou oferecendo serviço de limpeza de túmulos. Disse-lhe que gosto eu mesma de limpar e enfeitar as lápides do Pai e da Mãe, a única de forma de cuidado que afinal me resta.

Substitui as flores, lavei as lápides com água perfumada, tudo bem bonitinho como sei que eles gostavam, gostam, agradeci pelo privilégio de tê-los como pais, recolhi o lixo e me afastei procurando um banco à sombra para descansar enquanto esperava o táxi para voltar à casa. No único banco disponível, uma moça sentada rodeada de sacolas plásticas. Pedi licença e sentei observando as sacolas entreabertas – panos, esponja, escova – e uma garrafa de café.

Hoje o dia tá fraco!, ela disse. Perguntei se também limpava túmulos.  Respondeu que sim, mas só nessa época. Que trabalhava numa firma de limpeza, disse o nome, não guardei, que muitas pessoas foram mandadas embora, ela também, que a firma não acertou as contas, então ela “botou no advogado”, que enquanto não arranja outro emprego faz faxina. Quando aparece, pois até isso tá ruim hoje em dia!

Perguntou onde ficava o “meu túmulo”. Rindo internamente, apontei a direção. Disse-lhe que eu mesma gosto de limpar e cuidar dos meus. Olhando ao largo, comentou que os cemitérios ficam bonitos nessa época. Concordei, mas disse que sempre me dói, especialmente no Dia de Finados, ver o completo abandono de alguns jazigos, as floreiras sem uma mísera flor, algumas  vazias até de terra e as lápides que, de tão encardidas, nem deixam ver o  nome e as datas de nascimento e de desencarne da pessoa. (Na verdade sinto uma profunda pena do pobre que ali está, de mim, que o meu dia também há de chegar, da Humanidade inteira, pois sei que estamos todos inexoravelmente fadados ao esquecimento).

O momentâneo silêncio, acompanhado dessa agradável brisa de Primavera que areja nossos dias, foi quebrado. – Preciso dar um jeito de levar dinheiro hoje pro meu filho! Perguntei se era aniversário do menino.  Disse que sim. Percebendo onde ela queria chegar, retornei ao silêncio.

Ela então enveredou  para outro nível de argumentação. Que precisava levar leite porque o menino não toma café sem. Que foi mal-acostumado pela avó.  O silêncio se externava, mas uma falação grassava dentro de mim. Por um lado eu não queria dar esmola para uma moça tão jovem e tão cheia de vitalidade. Por outro, lá estava ela, jovem e cheia de vitalidade, certamente de sonhos também, predisposta a limpar túmulos alheios numa linda tarde ensolarada com tanta coisa mais agradável para fazer.

Talvez a sua história seja verdadeira. Talvez ela esteja mesmo desempregada. Talvez o menino faça mesmo oito anos na próxima semana.  Talvez a avó tenha mesmo estragado a criança ensinando-a a gostar de café com leite. Sei como são os avós. A verdade é que ela saiu para trabalhar – aquela garrafa de café sugere o tipo de alimentação que teve durante todo o dia – a clientela é que não apareceu. Tentando aparentar uma casual curiosidade, perguntei quanto elas cobravam pelo trabalho.   – Quanto a pessoa quiser pagar. 

Disse que lhe daria R$10,00 para ela lavar as lápides dos dois túmulos mais abandonados daquele Campo Santo. – É fácil. Aquele e aquele!,  ela apontou. Apertamo-nos as mãos como quem fecha um negócio. Ela levantou já munida de balde e escova e se pôs agachada a esfregar a lápide mais próxima. Uma colega se aproximou e quis saber se a lápide era minha. Ela fez que sim.

Encerrado o trabalho, convocou: – Vem ver como ficou “branquinho”! Ficou mesmo. D. Valda deve ter gostado da gentileza.  Lamentei não haver sobrado nenhuma flor dos meus pais para deixar a floreira bonitinha. Em geral compro uma florzinha a mais para esses casos, mas hoje errei na conta. Ela garantiu que arranjaria uma flor. Achei melhor não perguntar como. Meu táxi chegou.

Se ela cumpriu nosso acordo e lavou a segunda lápide eu não posso responder. Espero que sim. Por ela. Pelo seu filho. Pelo dono do túmulo não visitado. Por todos nós  que andamos tão carecidos de esperança na Humanidade.

 

 

Quero a Boca Assim e o Olho Assado, Doutor!

Antes da cirurgia ela abasteceu a geladeira, pagou antecipadamente todas as contas, tentou prever todas as necessidades da casa. Tudo para não precisar botar o pé na rua até  a cicatrização da papada,  o desinchume da boca e o sumiço do arroxeado dos olhos. Sair de casa só para o inevitável  e indispensável retorno médico.

Mas, sabe aquela pessoa que está sempre arrumada, bem penteada, sempre cheirosa, e num determinado dia, um único e fatídico dia em que ela está com quatro dedos de cabelo sem tinta ou com o esmalte lascado,  aquele dia em que a pessoa enche a cara de alface e depois descobre que deixou o fio dental na outra bolsa, sabe aquela manhã em que a mulher acorda se achando magra e tem a infeliz ideia de sair de vestido curto e não percebe que a meia está com o fio corrido, sabe quando a pessoa resolve espremer aquela espinha interna que brotou no meio da testa um dia antes da festa, aquele único e amaldiçoado dia em que algo assim acontece e a pessoa vira uma esquina e dá de cara com o ex ou com uma amiga falsa? Então.

Vamos ser sinceros: amiga falsa é pior do que inimiga; pior que ex também. Porque esses a gente disfarça, mexe no celular, vira a cara, faz de conta que não viu. Amiga falsa não dá. A gente faz que não vê; ela chama o nome da gente. A pessoa faz que não ouve; ela chama mais alto. Pois foi ela sair do consultório e dar de cara com uma dessas na porta do elevador:

  Fizesse plástica!!!!

Ela respirou fundo e fez que não.

A Outra: – Já sei! Fosse atropelada!

Ela disse não.

-Apanhasse da polícia!

Ela: – Que nada, guria! Sexo selvagem! Namorado novo, sabe como é.

A Outra se roendo de ódio, respondeu:

– Nossa, mas que estrago, hein? 

– Isso é porque tu não visse a cara dele como ficou!

Antes de entrar no carro ela ainda gritou:

– Aparece lá em casa!

Cirurgia Plástica 001

Imagem: Beleza: Débito ou Crédito? Colagem da autora.

Texto: Colaboração do Dr. L.C.J

Entreouvido na Sala de Cirurgia

Centro cirúrgico

E lá estava eu anestesiada dos seios para baixo, um braço amarrado para cada lado, numa prancha, imóvel e indefesa como um crucificado.

Passado o momento constrangedor e atemorizante da peridural, vi as pessoas afastarem-se. O silêncio reinou por alguns segundos, intermináveis segundos, suficientes para eu ser assaltada por um pensamento angustiante e recorrente: – E se eu precisar sair daqui? Como é que eu faço se eu precisar sair correndo daqui? E se alguém gritar: – Fogo!? – E se um maluco entrar atirando? Uma cara simpática aproximou-se: – Está tudo bem? Eu, blasé: – Tudo bem!

O burburinho das pessoas e  o som metálico dos instrumentos me salvaram da sensação de desamparo. Não pude deixar de ouvi-los, pois falavam alto. A conversa girava em torno dos novos modelos de smartphones.

Já visse o modelo novo? Puta coisa linda!

– O S7? Pois tu sabes que resolvi dar de presente pra minha mulher no aniversário de casamento, né. Levei ela pra escolher. O cara colocou no balcão o S4, o S6 e o S7. Ela escolheu o S4 porque achou mais lindo. Saí no lucro.

(Pessoa pouco versada em tecnologia e completamente desinteressada dessas novidades mercadológicas, eu ali, entendendo nada, mas ligadíssima no papo).

Lucro tive eu, rapaz! Comprei um pela metade do preço.

Onde, cara? Vô lá depois que sair daqui!

Comprei de um cara que eu conheço.

Trouxe dos Estados Unidos?

Não. É usado, mas tá novo. Praticamente sem uso.

Como assim?

– O cara é mudo. 

Ai, ai. Cronista não tem sossego nem dentro de um Centro Cirúrgico.

 

*imagem capturada na internet.

Sobre o Direito ao Sossego, ao Vazio e ao Silêncio

Um sábado desses, só que ensolarado, na ruazinha que fica perto da minha rua, encontrei o fotógrafo Rudi Bodanese, meu vizinho de cima, que, àquela hora levava sua pinscher, Tiquinha, para passear. – Bom dia! – Bom dia! Aí, levando a fera pra dar uma voltinha? Eu e aquela perguntinha infame. Ele, profundo: – Aproveitando a hora calma do dia. Não tem barulho! Depois fica impossível! Eu concordei, trocamos mais algumas palavras e fomos cada um pro seu lado.

Não saí imune. Também sinto um enorme desconforto com os rumos e os ruídos da nossa cidade. E do mundo. E da vida. Diz o Rudi que, não sei quando, fez um curso de Filosofia onde se discutiu exatamente esse tema, o Silêncio, e que a professora teria dito que todos nós gostamos de usufruir dessa harmonia, dessa sensação agradável proporcionada pelo silêncio, mas que é “na aspereza do convívio que a evolução se faz”.  Tudo bem. Já vivi o suficiente para essa compreensão. O problema está em que o mundo anda pleno de asperezas e carente do contraponto: o sossego, o vazio, o silêncio . Coisas desse mundo empanturrado de gente. E de brutalidade.

Foto: Fátima Barreto
Foto: Fátima Barreto

Olhos de Ver: Ver pela Primeira Vez o que Já Se Havia Visto Antes

SUNP0006 “Todos os dias atravessamos a mesma rua ou o mesmo jardim; todos os dias nossos olhos batem no mesmo muro avermelhado, feito de tijolos e tempo urbano. [coisas do primeiro olho!] De repente, num dia qualquer, a rua dá para um outro mundo, o jardim acaba de nascer, o muro fatigado se cobre de signos. [ o segundo olho!] Nunca os tínhamos visto e agora ficamos espantados por eles serem assim: tanto e tão esmagadoramente reais. Sua própria realidade compacta nos faz duvidar: são assim as coisas ou são de outro modo? Não, isso que estamos vendo pela primeira vez já havíamos visto antes. Em algum lugar, no qual nunca estivemos, já estavam o muro, a rua, o jardim. E à surpresa segue-se a nostalgia. Parece que nos recordamos e quereríamos voltar para esse lugar onde as coisas são sempre assim, banhadas por uma luz antiquíssima e ao mesmo tempo acabada de nascer. Um sopro nos golpeia a fronte. Adivinhamos que somos de outro mundo”.

Octavio Paz

Assim os Caminhos, assim os poemas, assim as pessoas.

Outono

Foto: Fátima Barreto
Foto: Fátima Barreto

Rubem Alves

“Prefiro o Outono. Acho-o mais bonito, mais sábio, mais tranqüilo.

(…) O Outono me chama de volta. Devolve-me à minha verdade. Sinto então a dor bonita da nostalgia, pedaço de mim, de que não posso me esquecer.

Primeiro é aquele friozinho pelas manhãs e pelas tardes. O Verão já se foi. Fica, dentro, o sentimento de que tudo é despedida. O Outono tem memória. Coisa de que se precisa, para se ter saudade. E saudade, como nos ensinou Riobaldo, é uma espécie de velhice.

Depois são as cores. O céu, azul profundo, as árvores e grama de um outro verde, misturado com o dourado dos raios de sol inclinados. Tudo fica mais pungente ao cair da tarde, pelo frio, pelo crepúsculo, o que revela o parentesco entre o Outono e o entardecer. O Outono é o ano que entardece.

E as tardes, como se sabe, são aquele tempo do dia quando tristeza e beleza se misturam. E o mundo de dentro reverbera com o mundo de fora. Jorge Luís Borges estava certo: a gente vai andando, solidamente, e de repente vê um pôr de sol, e está perdido de novo. É que o pôr de sol é mais que pôr de sol. É ‘este poente precoce e azulando-se o sol entre os farrapos finos de nuvens, enquanto a lua é já vista, mística, no outro lado’ (Pessoa): ‘Uma última cor penetrando nas árvores até os pássaros e este cantar de galos e rolas muito longe’ (Cecília). Quando tudo se aquieta, e o tempo diz sua passagem nas cores que se sucedem, o rosa, o vermelho, o marrom, o roxo, o negro… Sabe-se então que o fim chegou. Pôr de sol é metáfora poética, e se o sentimos assim é porque sua beleza triste mora em nosso próprio corpo. Somos seres crepusculares”.

Vocês eu não sei. Eu sou.

O Choro e o Devaneio

O choro forte da criança me arrancou do devaneio. E a mãe, mais que depressa, desabotoou a blusa para aplacar a fome do seu menino tão pequeno. Uma cena tocante – uma fêmea alimentando seu filhote, um ser humano saciando a fome de outro humano com os recursos do seu próprio corpo, e, claro, a inevitável alusão: a sobrevivência da espécie -, mas mereceu tão somente um rápido olhar dos transeuntes, cada qual ocupado com as suas próprias emergências; o horário do ônibus, por exemplo.

O enquadramento da janela destacava a imagem de Mãeefilho e creio ter visto uma luminosidade especial em torno deles. O resto era cenário. Coincidentemente, naqueles dias se discutia a proibição da amamentação em lugares públicos. A que ponto chegamos.

Eu me perguntava: O que tanto incomoda essas pessoas? O que elas têm a ver com a maneira que uma mulher alimenta seus filhos? Seria uma questão moralista? Um constrangimento de natureza edipiana à visão do seio nu? Alheios às discussões, ali estavam Mãeefilho exercitando seu direito natural e sagrado.

No entanto, algo destoava. Não eram os ônibus apinhados de gentes e sua indiferença, não eram as pessoas disputando os bancos dispostos à sombra, nem todo aquele concreto ao redor.

A partida do ônibus contrastou a imagem de Mãeefilho contra a vitrine da lanchonete com suas latas de Coca-Cola, seus pacotes de salgadinho transgênico e sacos de Pipoca Bilu. Súbito, a iluminação.

Leite de Mãe é natural demais. É produzido de graça, consumido de graça, não permite rotulagem, não precisa de embalagem, não precisa de transporte, não paga impostos, não gera consumo de água nem de energia. Tem que ser abolido. Não combina com os dias atuais.

amamentação

* imagem captada da internet

0800… Fala Quirida!

Sexta-feira, 23:30. Eu acabara de chegar em casa depois de uma semana exaustiva de trabalho. Tudo o que queria era banho, comida e cama, pela ordem.  Pedi uma pizza e me arrastei até o chuveiro. Trinta minutos depois o porteiro interfonou: _ D. Norma, o entregador de pizza… Um minuto depois, a campainha tocou. Abri a porta e…

– Boa noite, quirida! Olha só quem chegou! A tua pizza bem quentinha pra matá a tua fome! E depois vai descansar, vai, que tu táj com cara de cansada!

Um autêntico nativo! Com Certificado de Origem, “legito”, como se diz. Aquilo era inusitado, íntimo demais, contrariava o que dizem as regras do bom atendimento, mas não pude deixar de sorrir e de me sentir reconfortada. Esse jeito amistoso que decorre de usar as palavras no diminutivo, essa facilidade para ficar íntimo (tá bom, é invasivo!). Essa simplicidade em se mostrar como é, tão própria do nosso povo… No dia seguinte, contei a história para uma amiga achando que estava abafando. Pois o que ela me relatou humilhou a minha pobre experiência.

Dirigindo-se a uma festa e atendendo à recomendação de “Se beber, não dirija” ela ligou para o serviço de rádio-táxi. Em poucos minutos o táxi parou na frente do prédio. Ela entrou e deu a direção ao motorista. Tal foi a sua surpresa quando ele, em vez de arrancar, se voltou para trás, o braço apoiado no banco do passageiro, a cabeça sobre o ombro, olhou-a e disse:

Eu vou te dizer uma coisa, que tu táj bonita e cheirosa, tu táj! Eu digo isso com todo respeito! Eu tenho a minha senhora, mas que tu táj bonita tu táj! Então vamos fazer o seguinte: o sol tá que é um maçarico! Vamos levantar o vidrinho que é pra ti não suá e quando tu saí o cheirinho bom ficá aqui dentro.

Já outro dia, aconteceu o seguinte: ela é funcionária pública e, como tal, foi correntista do BESC durante muitos anos. Pois o BESC estava sendo incorporado ao Banco do Brasil naqueles dias e muitas dúvidas agitavam os funcionários da sua repartição. Um dizia que seria necessário fazer um novo cadastramento, outro que o número da conta seria alterado, outro que o cartão ia perder a validade, outro que os contratos de empréstimo seriam renegociados. Tinha até quem falasse em demissão em massa de acordo com uma fonte fidedigna. Prática e objetiva, ela resolveu dar um basta à especulação. – Vamos falar com quem realmente sabe. Vou ligar para o 0800. E ligou.

Preparada para interagir com a “máquina” e seguir aquela irritante liturgia de “se deseja tal coisa ligue 2, se deseja falar com tal setor ligue 3, se deseja isso disque 4, se deseja aquilo disque 5, se deseja falar com nossos atendentes ligue 9 e espere sentado que em pé cansa!”, ficou surpresa quando mal disse: – Boa tarde!, do outro lado da linha um homem respondeu: – Faala quirida! Contando ninguém acredita! Ela conteve o riso e passou a relatar as dúvidas e os boatos que corriam. Ele respondeu admirado: –Táj brincando!

Ela disse que não. Que tinha ouvido falar que as coisas iam mudar e tal e coisa. A conversa se desenrolou e, ao final, a situação havia se invertido: ela é que passara a dar informação ao atendente. A certa altura da conversa, ele, demonstrando preocupação, se saiu com essa: – Não me dij! É até bom eu sabê porque se fô assim eu tô ferrado!

E já ia encerrando a ligação quando ela perguntou: – E eu? O que é que eu faço? Ao que ele respondeu: – Posagora!

Por essa luz que me alumia!

Do livro Cenas Urbanas e Outras Nem Tanto. Norma Bruno. Bernúncia Editora, lançado em outubro de 2012.