Na família há quem não saiba seu nome. Chamava-se Aurelina (minha mãe recebeu o mesmo nome em sua homenagem) e era, na verdade, minha bisavó. Mas era assim que a chamávamos – Vó de Laguna – para diferenciá-la da filha Francisca, a Vó Chica, que morava perto da gente.
Era daquelas avós das histórias infantis, baixinha, delicada e bondosa. Tinha o olhar sorridente, de um azul intenso, trazia o cabelo preso num coque, usava broche, xale e meia fina. Era alegre, vivaz, apesar dos muitíssimos sofrimentos e privações.
Aos oitenta e tantos anos, tinha fama de andarilha porque morava em Laguna, mas vivia na estrada. Vinha de malinha para “passar uns tempos” e ficava de três a quatro meses transitando entre as casas dos inúmeros netos. Então voltava para sua base. Preferia a casa dos netos porque as filhas queriam fazê-la sossegar o pito e isso era a última coisa que aquela velha queria fazer na vida. Argumentava: – Se eu ficar em casa a Morte sabe onde me encontrar. Eu, hein? Se ela quiser me levar que me procure, eu é que não vou ficar aqui esperando!
Todos a queriam na hora do aperto e nem precisava chamar. Bastava a carta chegar à Laguna e ela se desabalava para a casa do necessitado, “pra ajudar”. Se não havia o que fazer, ela ajudava do jeito que podia, ajoelhada, grudada no rosário. O neto pedia: – Reza por mim, Vó! – Não precisa pedir, meu filho. A Vó vai rezar. Confia em Deus! Em Deus a gente confiava, mas contava mesmo era com a Vó. Aquilo sim é que era onipresença e infalibilidade! Salve Rainha, mãe de misericórdia! De vez em quando aparecia de surpresa, pois tivera um pressentimento.
Católica fervorosa, tinha sonhos premonitórios, conhecia ervas e benzeduras, rezava responso. Em outros tempos seria condenada à fogueira em praça pública. Adorava borboletas e tinha com elas uma estranhíssima relação de cumplicidade. Às vezes, dizia ensimesmada: – Tem alguma coisa acontecendo. Hoje uma borboleta veio me arrodear no jardim…
À noite, sentava num banquinho, o banquinho da Vó de Laguna – cada casa tinha um -, para pitar o palheiro, cujo fumo ela picava diligentemente com seu canivete afiado – sim, minha bisavó tinha um canivete! – enquanto os bisnetos iam se instalando, em círculo, pelo chão. Alguém dava a senha: – Conta uma “estória” Vó?
Ela então desandava a falar de castelos e reinos distantes, príncipes valentes e lindas princesas, pais omissos, madrastas abusivas e bruxas más. Hoje reconheço naquelas “estórias” a riqueza da tradição oral, sua mitologia e os estágios da iniciação: a perda da inocência, a queda, a incursão pela floresta escura, o retorno à condição de selvagem, o circuito de provações, o aprendizado, o casamento sagrado e a recompensa final. Conta de novo Vó? Ai, que saudade!
Enquanto contava histórias, ela enrolava o fumo, acendia o palheiro, pitava e passava o cigarro para o descendente mais próximo, não importava a idade – que, por sua vez, pitava, engasgava, tossia, mas não desistia e o passava adiante. O cigarro girava na roda repetindo uma cena ancestral: na escuridão da noite, uma tribo se reune e uma mulher velha conta histórias ao redor do fogo. Mais que o vício, ela socializava valores e nos conectava com o universo arquetípico e a Sabedoria do Mundo.
Um dia antes de eu completar vinte anos ela foi embora. Desde então uma coisa estranha vem acontecendo. Sempre que algo importante está para acontecer, uma morte, o nascimento de mais uma criança, um casamento ou aniversário, uma mulher da família telefona para contar que, há dias, uma borboleta está parada no umbral da porta. É o sinal. Ela veio pra ajudar.
Bença Vó!
* Foto: Praça Central de Laguna terra dos meus ancestrais e também da escritora Maria de Fátima Barreto Michels, condinome Fátima da Laguna, autora da foto.