Florianópolis 286 Anos e A Nossa Tão Maltratada Memória

Escombros da residência do ex-governador Hercílio Luz, localizada na rua Raul Machado, proximidades da Avenida Mauro Ramos, região conhecida como “Banco Redondo”. Fonte: Diário Catarinense ed. 13/08/2009. Acervo de recortes do sr. Aulo Gomes Jardim.

“Nosso velho cenário urbano, de tantas histórias e lendas, está indo para o chão. (…) Quem amará, no futuro, uma cidade que vai demolindo aos poucos todas as referências de poesia, encanto e fraternidade?”  (Carlos Damião)

O jornalista Carlos Damião, protesta pela derrubada da centenária mangueira existente na Avenida Trompowsky, propondo uma reflexão que, sem sua licença,  adapto e aplico aqui ao nosso tão maltratado patrimônio histórico.

Aos poucos, de árvore em árvore tombada, de casa em casa demolida, a cidade se despersonaliza e vai ficando “moderna”, “cosmopolita” como querem alguns. Na verdade, Florianópolis vai ficando uniforme, sem surpresas, parecida com outras cidades do mundo. Ítalo Calvino falou disso no seu inspirado livro As Cidades Invisíveis:

“- Viajando percebe-se que as diferenças desaparecem: uma cidade vai se tornando parecida com todas as cidades, os lugares alternam formas ordens distâncias, uma poeira informe invade os continentes”.  (9 – 125)

” Se ao aterrissar  em Trude eu não tivesse lido o nome da cidade escrito num grande letreiro, pensaria ter chegado ao mesmo aeroporto de onde havia partido. Os subúrbios que me fizeram atravessar não eram diferentes dos da cidade anterior. (…) Era a primeira vez que vinha à Trude, mas já conhecia o hotel em que por acaso me hospedei; já tinha ouvido e dito os meus diálogos com os compradores e vendedores de sucata; terminara outros dias iguais àquele (…). Por que vir a Trude, perguntava-me. E  sentia vontade de partir.

– Pode partir quando quiser – disseram-me -, mas você chegará a uma outra Trude, igual ponto por ponto; o mundo é coberto por uma única Trude que não tem começo nem fim, só muda o nome do aeroporto”.  (As Cidades Contínuas 2 pg. 118)

A Ponte Hercílio Luz e o Pesadelo do Menino Vinícius

Quando eu era criança tive um pesadelo do qual nunca esqueci. Eu estudava no Coração de Jesus e sonhei que fazíamos um passeio com a turma justamente na Ponte Hercílio Luz. Meus colegas (eram várias turmas), e as professoras seguiam na frente. Eu ia um pouco mais atrás com a minha professora. A certa altura, os trilhos de madeira começaram a cair bem na minha frente. Vi meus amigos e várias professoras caindo.

Eu tentava escapar, saltando de tábua em tábua, e ao mesmo tempo tentava ajudá-los, mas era em vão. Fiquei nessa agonia até que acordei. Jamais esqueci esse sonho. Eu devia ter menos de oito anos, veja só! Taí a minha história. Um dia, talvez, eu a transforme num conto, mas te deixo à vontade para fazer o mesmo.

Beijo grande do Vini.

* Vinícius Alves nasceu em Florianópolis. É escritor, poeta, editor e boa praça. Escreveu Olho e Fôlego e traduziu Edward Lear Um Livro de Nonsense, ambos editados pela Bernúncia, sua própria editora. Para conhecer sua prosa, visite: olhoefolego.blospot.com

Eu, Meu Pai, Nosso Carro Velho e a Ponte Hercílio Luz

(da série porque a Ponte não pode cair)

Até os sete anos morei num lindo chalé no bairro Saco dos Limões. Já falei sobre isso. Ao entrar em idade escolar – sou do tempo em que não havia “jardinzinho” -, minha mãe inventou de me matricular no Colégio Nossa Senhora de Fátima, localizado perto da casa da minha avó, no Estreito, parte continental da cidade. Anos depois ela confessou tratar-se de uma estratégia para se mudar para lá.

Daí então que, dos sete aos nove anos e de segunda a sexta, eu morava na casa da Vó Chica. Nos finais de semana voltava para minha casa. Meu pai me pegava depois do trabalho e me trazia de volta no domingo à tardinha. Nesse dia, minha mãe e meus dois irmãos vinham também aproveitando para dar uma “voltinha” no nosso velho Hillmann de cor creme.

Certo dia, não sei porque cargas d’água, meu pai não pode me levar no domingo. Saímos então na segunda-feira bem cedinho para que ele pudesse ir até o Estreito e retornar a tempo de cumprir o expediente na Rádio Diário da Manhã. Pois muito bem.

Deu tudo errado. Mal entramos na Ponte, o Hillmann, que de vez em quando nos deixava na mão, começou a ratear. Meu pai encostou o carro, o mais que deu, abriu o capô para ver o que podia fazer, mas não descobriu o defeito. Dois moços que caminhavam pela lateral da Ponte empurraram o carro de ré até a cabeceira insular, que estava mais próxima. Eu, dentro do carro sem entender coisa alguma.

A Ponte ainda tinha o assoalho de trilhos de madeira do projeto original. Se saísse do trilho, o veículo teria que continuar assim até o fim sob pena de tombar. Meu pai estacionou o Hillmann no Belvedere, mandou que eu pegasse minhas coisas e saísse. Obedeci sem coragem de perguntar o que viria a seguir; meu pai ficava nervoso nessas horas. Ele pegou-me pela mão e caminhou em direção à Ponte. Entrou decidido na passarela lateral. Eu entrei porque não tinha escolha.

A passarela era (ainda é?) feita de mourões enfileirados numa distância entre cinco a dez centímetros, espaço que aos meus olhos de criança se alargava. Eu titubeava e meu pai me segurava ainda mais firme. De repente, parou.

À nossa frente um trecho onde faltavam duas ou três tábuas alternadas (já naquela época a Hercílio Luz era tratada com descuido), era preciso pisar com atenção. Meu pai apoiou-se na balaustrada de ferro, sua mão apertando a minha a ponto de me machucar. Ele ordenou: – Não olha pra baixo! Foi o mesmo que mandar olhar.  Dava pra ver as águas profundas cor de esmeralda, lá embaixo. Era assustador! E lindo!

Refeitos do susto, passamos a usufruir a belíssima paisagem e a leve brisa que nos acompanhava na travessia. Caminhamos até a casa da minha avó nas proximidades da Igreja Matriz – é um bom trecho -, pois, para mais ajudar, não passou um único ônibus por nós. Resultado: eu perdi a escola e o meu pai o dia de trabalho já que ele ainda teria que arranjar alguém para rebocar o carro e levá-lo para a oficina; isso a pé, coitado. Hoje a gente resolve tudo pelo celular e ainda reclama!

No dia seguinte levei uma anotação para a escola explicando o motivo da minha ausência. Diante da turma, a professora quis saber o que havia acontecido e eu contei a aventura em todos os seus detalhes. Principalmente como quase caí da Ponte Hercílio Luz, ao pisar numa tábua solta, ficando com uma perna pendurada. Sorte que o meu pai me segurou! Não fosse por ele…

Foto: Ponte Hercílio Luz. Décda de 1960.  Arquivo Rogério Santana foto captada da internet. Observe os trilhos de madeira e a passarela para caminhantes à esquerda.

Esta crônica está publicada no livro Cenas Urbanas e Outras Nem Tanto. Bernúncia Editora. Florianópolis, 2012.

Ao Miramar, in Memoriam

Memorial Miramar um esforço (bizarro) de compensar a inutilidade da sua demolição há exatos 37 anos (24 de outubro de 1974).

“Destruída parte de um bairro onde pendiam lembranças da infância do seu morador, algo de si morre junto com as paredes ruídas, os jardins cimentados. Mas a tristeza do indíviduo não muda o curso das coisas. (…) Só o grupo pode resistir e recompor traços de sua vida passada. Só a inteligência e o trabalho de um grupo (uma sociedade de amigos de bairro, por exemplo) podem reconquistar as coisas preciosas que se perderam, enquanto estas são reconquistáveis. Quando não há essa resistência coletiva os indivíduos se dispersam e são lançadas longe as raízes partidas.

Podem arrasar as casas, mudar o curso das ruas; as pedras mudam de lugar, mas como destruir os vínculos com que os homens se ligavam a elas? (…) À resistência muda das coisas, à teimosia das pedras, une-se a rebeldia da memória que as repõe em seu lugar antigo”.

Ecléa Bosi

A Cidade como Espaço de Oposição entre o Velho e o Novo

A Desvalorização da Memória  

Houve um tempo em que os objetos eram substituídos exclusivamente por motivo de perda, quebra ou exaustão do material. A Revolução Industrial, no entanto, inventou uma nova “maneira de fazer as coisas”.

Esse novo modus operandi promove a obsolência intencional dos produtos obedecendo a lógica de mercado cuja ordem é propiciar, continuadamente, a realização de novos negócios. Daí que acabamos nos acostumando à “durabilidade” relativa dos produtos e à “necessidade” de sua substituição por um exemplar novo e mais moderno ainda que o anterior esteja em perfeito estado e em pleno funcionamento. Vivemos num mundo de coisas transitórias.

Considere-se ainda o efeito das novas tecnologias da informação que permitem trocas e traslados em tempo mínimo e a influência da publicidade que uniformiza os idiomas, os produtos e as paisagens direcionando nossas preferências e aversões. Como resultado dessa massificação que despersonaliza as pessoas e os lugares, tudo o que é antigo passa a ser visto como desatualizado, atrasado, inadequado e inapropriado, portanto passível de substituição. Termina que, hoje, todos os lugares se parecem.

A noção de globalização traz implícita a desvalorização da Memória. Há, entre ambas, pode-se dizer, uma certa incompatibilidade conceitual que coloca em contradição o velho e o novo, o antigo e o moderno, o local e o global. Some-se a isso o fato de que, em geral, construções e prédios antigos estão localizados nos núcleos de fundação das cidades e suas cercanias, espaços mega valorizados no mercado imobiliário e, portanto, cobiçados pela indústria da construção civil.

A ideologia da renovação e da mudança se traduz, na área da Cultura, em desvalorização do já existente, do que é antigo e do que é local, legitimando a substituição dos equipamentos no espaço urbano. Uma mentalidade particularmente danosa aos edifícios históricos; um campo fértil para o discurso desenvolvimentista.

“Jamais se deve confundir uma cidade com o discurso que a descreve. Contudo, existe uma ligação entre eles”. 

Calvino

Centro de Florianópolis Foto: Carlos Amorim

Leitura de referência para este artigo:

Adams, Betina – Preservação Urbana: gestão e resgate de uma história. Florianópolis. Editora da UFSC, 2002.

Cidade: Cenário e Arquivo da História

 

Ponte Hercílio Luz Foto: Coleção Rogério Santana. Década de 1960.

Os traços de uma cultura não se definem por momentos ou por manifestações esporádicas. Sua fisionomia vai se fazendo aos poucos, deixando marcas no tempo e nos espaços que passam a constituir-se em memória e tradição. O selo de autenticidade dessas manifestações é a vida que elas contêm e a força de permanecerem pelo tempo, marcando e vitalizando o presente. Assim, tradição e memória não serão simples lembranças de um passado que se perdeu, ou que vai sempre distante, mas são, numa certa medida, o modo de entendermos e vivermos nosso tempo”. (Abrelino Vicente Vazatta)

Cenário onde se teatralizam as ações humanas e, ao mesmo tempo, “arquivo de recordações”, a cidade é, antes de tudo, uma realidade histórica, por isso inscreve e traz em si, traços e evidências de sua evolução e as projeta em direção ao futuro. Esse projetar se faz pela memória.

“ ‘Alí era o quarto de mamãe e alí era o meu. Do outro lado morava o meu irmão’. Em pé, no meio das pistas do eixo viário, o morador vai reconstituindo um espaço que é real em sua cabeça” (Santos & Vogel).

Nossas lembranças estão armazenadas no conjunto de objetos que nos rodeiam. Para além dos seus aspectos utilitários, ao longo do tempo, os objetos vão se tornando repositório de nossa vida cotidiana, configurando a conservação de épocas, fatos, pessoas e de emoções que, já decorridos, invadem o momento presente. Pela sua presença, os objetos biográficos atualizam o passado e influenciam tanto nossa percepção do mundo quanto a sua narrativa. Ecléa Bosi fala dessa presença e o faz poeticamente:

 “Mais que um sentimento estético ou de utilidade, os objetos nos dão um assentimento à nossa posição no mundo, à nossa identidade; e os que estiveram sempre conosco falam à nossa alma em sua língua natal. (…) Quanto mais voltados ao uso cotidiano mais expressivos são os objetos: os metais se arredondam, se ovalam, os cabos de madeira brilham pelo contato com as mãos, tudo perde as arestas e se abranda. (…) O que poderá igualar à companhia das coisas que envelhecem conosco? Elas nos dão a pacífica impressão de continuidade”.

Ancorada nos objetos biográficos, a Memória permite lidar com as temporalidades da existência e, à dolorosa consciência da nossa finitude, contrapõe a promessa de continuidade através dos relatos de família, das peculiaridades de um lugar, de uma Cultura.

 

Leituras de referência para este texto:

Bosi, Ecléa. O Tempo Vivo da Memória. Ensaios de Psicologia Social. São Paulo. Ateliê Editorial, 2003.

Memória e Sociedade. Lembranças de Velhos. 3ª ed. São Paulo. Companhia das Letras, 1994.

Santos, Carlos Nelson & Vogel, Arno. Quando a Rua Vira Casa: a apropriação de espaço de uso coletivo em um centro de bairro. 3ª ed. São Paulo. Projeto, 1985.

Vazatta, Abrelino Vicente. in: Prefácio.Santos, Carlos Nelson & Vogel, Arno. Quando a Rua Vira Casa: a apropriação de espaço de uso coletivo em um centro de bairro. 3ª ed. São Paulo. Projeto, 1985.

O Espírito da Cidade

Embora se apresente como uma construção de natureza material, a cidade é uma das mais genuínas expressões da natureza humana. Nela se concentram todos os homens, todos os saberes, todos os ritos, toda a riqueza, toda a pobreza, todas as virtudes e também todas as misérias humanas. A cidade é também os seus problemas.

A cidade nasceu da identificação que reúne pessoas solidárias e, como bem disse Lewis Munford, inventa o vizinho, aquele que nos acode no momento de precisão e se alegra conosco nos momentos felizes. Esta união gera conforto, abundância e segurança aumentando as chances de sobrevivência do grupo.  A cidade atrai e fixa os homens num território, ordena e hierarquiza a sua ocupação e também o trabalho.

As intervenções das sucessivas gerações humanas ao longo da história ocorreram de modo progressivamente mais intenso e mais complexo o que, por um lado conferiu eficácia às cidades, mas por outro fez surgir a “cidade sem alma” de que nos falou Spengler.

Hoje as cidades vêm se transformando num espaço quase hostil onde acontecem trocas, porém cada vez menos convivência. Mas, é preciso lembrar, a cidade é, antes de tudo, o que fazemos dela. Paulo Mendes da Rocha alerta: “antes que a cidade enfeie, quem enfeia são as pessoas”.

Apesar disso, a cidade continua sendo essencialmente o lugar do encontro. É o espaço onde se concentra o conhecimento e se realiza a cultura, onde se aprende o convívio com a diversidade e o exercício da tolerância, onde se desenvolve a civilidade e a cidadania. É o cenário onde as pessoas vivem os retalhos de suas histórias particulares e assim vão tecendo, alinhavados que estamos uns aos outros, as histórias dos lugares.

Este blog é uma homenagem à ideia de “cidade”, uma das mais bem sucedidas criações humanas, à minha querida cidade e à cidade de cada um. Muito do que se lê aqui aconteceu, de fato, do jeito mesmo que é narrado; muito mistura realidade e fantasia. O resto é inventado. Mas, a considerar a vasta criatividade humana e as possibilidades que uma cidade oferece, tudo bem que podia ter acontecido…