Uma Casa de Varanda

Saudade de um tempo em que a gente morava em casas térreas de muros baixos e quintais com roseiras, lírios e cravinas. Os parentes e amigos chegavam destramelando o portão e já apareciam direto na porta da cozinha estampando na cara da gente um inesperado sorriso e o olhar de contentamento: – Olhó-lhó quem táqui, ó!!! Ô, fulano! Vem ver quem chegou!, enquanto se apressava a botar a chaleira no fogo pra passar o café.

Norma Bruno

Em julho de 2021

Foto: Roney Prazeres

A Memória ao Rés do Chão

O que estava acontecendo em 1886 na Cidade de Nossa Senhora do Desterro, no Brasil e no Mundo quando a primeira pedra foi assentada no chão de terra localizado entre a ruas da Lapa, a Rua do Açougue, a Augusta e a Rua da Cadeia?

      Einstein ainda usava fraldas, Coco Chanel não podia escolher seus vestidinhos, Picasso desenhava com a genialidade de uma criança de cinco anos, Van Gogh a recém havia começado a dar as suas pinceladas, Fernando Pessoas, Charles Chaplin e Alfred Hitchcock não tinham nascido. 

      No ano em que os calceteiros, homens simples e presumidamente escravizados, assentaram aquelas pedras no chão de terra da provinciana Desterro, o telefone ainda era uma novidade mundial restrita aos endinheirados,  Thomas Alva Edison há pouco havia logrado êxito nas suas famosas “dez mil tentativas” de inventar a lâmpada elétrica,  Karl Benz apresentava o automóvel, sua extraordinária invenção e a Coca Cola, essa mistura de “xarope, água carbonada, muito sal e muito açúcar”, era vendida pela primeira vez nos EUA. Quem diria no que ia dar…

      Naquele mesmo ano, na Alemanha, morria Franz Liszt, o virtuoso pianista austro-húngaro; em Nova Iorque era inaugurada a Estátua da Liberdade e, em Chicago, acontecia o Massacre de Haymarket que acabaria por influenciar a criação do Dia do Trabalho. Robert Louis Stevenson, o escritor britânico, publicava “O Médico e o Monstro”, sua obra-prima e a Rainha Vitória fazia e acontecia no seu império sem direito ao lusco-fusco. 

      O calçamento de pedras do Centro Histórico, pois, é mais velho do que a Torre Eiffel; do que o Rádio e do que o primeiro voto feminino no mundo; mais velho do que o Cinema e a descoberta do RX. É apenas um ano mais novo do que a Lei dos Sexagenários, mas é dois anos mais velho do que a Lei Áurea; tem a mesma mais que centenária idade do poeta Manuel Bandeira e da pintora Tarsila do Amaral; já o Getúlio Vargas é quatro anos mais velho. Heitor Villa-Lobos, por sua vez, é um ano mais moço. Mais moços são também a Academia Brasileira de Letras, Pixinguinha e Lampião.                           

      Em 1886, Santos Dumont era um rapazote magrelo e imberbe e ninguém apostaria em seu futuro grandioso. O arruamento de paralelepípedos é mais velho do que o avião, tem mais “chão” do que a República Brasileira e que a primeira música de Carnaval.

    Fora a novidade, naquele ano os moradores da portuária Desterro andavam apreensivos com as notícias de um surto de Cholera Morbus na Argentina, pois as centenas de vítimas da Febre Amarela, da Varíola e outras enfermidades relacionadas à saúde pública eram registros de fresca memória na cidade.

      A Figueira, então uma jovem árvore de cerca de vinte anos, ainda não havia sido transplantada e enraizada em seu lugar central e definitivo na Praça da Matriz, atual XV de Novembro que, naquela altura, não tinha esse nome uma vez que a República Brasileira ainda não havia sido proclamada. Sim, senhoras e senhores, aquele paralelepípedo é do tempo do Império. Como dura aquela coisa!

      O imponente prédio da Alfândega era algo relativamente recente na paisagem urbana e mesmo o novo Mercado Público ainda demoraria uns bons anos para ser construído. O Clube Doze de Agosto, o clube social mais antigo de Santa Catarina,  reunia as “boas famílias” da cidade em elegantes soirées dançantes há pouco mais de uma década. 

      Por aqueles arruamentos caminharam, em diferentes épocas e por diversos motivos, Victor Meirelles, Cruz e Sousa, Antonieta de Barros, Virgílio Várzea, Crispim Mira, Franklin Cascaes e tipos populares como o Bento, a Pandorga, o Papo Amarelo, a Barca-Quatro, a Nega Tita, a Traça e outros seres aluados, além  das inúmeras pessoas anônimas moradoras das casas de porta-e-janela da região da Pedreira, lugar de gente pobre, trabalhadores a caminho do seu ganha-pão como o meu avô Manoel Antônio Bruno, exímio marceneiro requisitado por “gente da alta”, como o meu pai, Lourival Bruno, a caminho do seu ofício na Rádio Diário da Manhã e também gente futuramente famosa como o menino Zininho, vizinho dos meus avós no Largo Treze de Maio. 

    Por ali também eu passei, pequenininha, de ônibus, de mão dada com a minha mãe, D. Aurelina, em nossas muitas vindas do Saco dos Limões até a “Cidade” para comprar aviamentos ou um corte de fazenda para ela fazer nossas roupas de vestir. Também passei por aquelas ruas de carro, a família toda presepeira em nosso velho Hillman de cor creme, nos tão aguardados passeios em “dia de salário” para comprar revistas na banca da Praça Fernando Machado.  

      Por fim, por aquele chão passou e passa, há 275 anos, o Querido e Glorioso Nosso Senhor dos Passos acompanhado de Sua Mãe e um mar de gentes a pedir e a agradecer as graças alcançadas e isso, por si só, deveria bastar para haver um pouco mais de cuidado e reverência com aquelas pedras centenárias. 

      Mas, se nada disso te convence da importância histórica e afetiva daquelas ruas estreitas e das inúmeras razões para a preservação do Calçamento do Centro  Histórico,  eu vou te apresentar um argumento definitivo e derradeiro: consta que quando a primeira pedra foi assentada no chão de terra localizado entre a ruas da Lapa, do Açougue, a Augusta e a Rua da Cadeia, o lendário guitarrista britânico  Keith Richards, tido e havido como O Imortal, esse cara nem tinha nascido.

Norma Bruno

Em 17 de agosto do Ano da Graça de 2023

Dia Nacional do Patrimônio Histórico

Dia do Patrimônio Cultural

* Rua Augusta (João Pinto), Rua do Açougue (Saldanha Marinho), Rua da Lapa (Nunes Machado), Rua da Cadeia (Tiradentes)

Foto: Roney Prazeres – visão do Calçamento Centenário a partir do Casario da Praça XV de Novembro. Centro Histórico – Ilha de Santa Catarina

Voltei. Aqui é o meu lugar!

A “casinha nova” era mais espaçosa, mais bonita e imponente. Mas, passada a novidade, começou a me parecer fria, impessoal, chique demais. Daí a eu me sentir desconfortável foi um pulo. Desgostei. É como diz a velha canção: “Aqui é o meu lugar”. Voltei pra casinha velha, minha Casa com Varanda e Muro Baixo. Pra entrar é só bater palmas na porta da cozinha. Cuidado com a Bucica. Ela não morde, mas tem o coração sensível. Então, faz um carinho. O nome dela é Judite.

A Jornada Tortuosa

Quando se está num caminho virtuoso, tudo que acontece, o de bom e o de ruim, o que dá certo e o que dá errado, a pessoa que chega, a pessoa que vai, tudo contribui para nos levar ao lugar onde deveríamos estar desde o começo. O que a jornada tortuosa faz é nos reconduzir ao Caminho e preparar-nos para esse momento, para o encontro com o que sempre esteve lá à nossa espera. A isso chamamos Destino.

Tarô O Mundo

 

*imagem capturada na Internet. Desconheço a autoria.

 

Era Táxi, mas Parecia Uber

Tenho resistido a usar o UBER não porque tenha restrições ao aplicativo. Sei que a inovação é inexorável. E desejável. Mas penso que devíamos encontrar um meio termo entre o aluguel do serviço nos moldes tradicionais e o novo.

Uma maneira seria regulamentar o aplicativo cobrando algum tipo de taxa, afinal, se eu quiser colocar uma barraquinha pra vender artesanato na esquina da minha rua serei obrigada a pagar imposto, por que cargas d’água o aplicativo deve ser isento? Automóveis poluem o ar, sobrecarregam o trânsito, exigem manutenção das vias urbanas. Há um custo ambiental, econômico e social já que não se investe em transporte público de qualidade. Acho justo.

Por outro lado, é preciso tornar o serviço de táxi competitivo, diminuindo os impostos para que os taxistas possam enfrentar os novos tempos. A arrecadação municipal não cairia porque o que se perde de um lado, se ganha do outro. Capaz até de aumentar.

Minha resistência se dá pelo excelente atendimento que tenho do Rodrigo e do Ricardo, condutores do mesmo veículo, um de dia, outro à noite, que me servem desde que decidi não ter mais carro, há pelo menos sete anos. Costumo dizer que eles são meus motoristas particulares e que quando não estou utilizando seus serviços eu os libero para atender o público em geral. Pensa num serviço bom! Recomendo pra todo mundo. Viramos amigos.

Pois muito bem. Hoje pela manhã liguei pro Rodrigo solicitando que me levasse para fazer os tais exames  laboratoriais. Como sempre, ficou combinado que eu ligaria quando estivesse liberada. Foi o que fiz. – Ô, D. Norma, só que agora eu tô no Continente e vou demorar. A senhora pode esperar?  Em geral eu espero, mas hoje não dava. Acionei a Central de Táxi e dez minutos depois o táxi chegou. Dei a direção.

Me chamou a atenção o carro novo, limpíssimo, a música instrumental em um volume agradável, a velocidade civilizada, a manutenção de distância regular do carro da frente, o cuidado ao fazer as curvas e passar nos buracos e, principalmente a gentileza e a educação do condutor. – O ar está muito frio?Está ótimo, obrigada!  Eu pensei: – Táxi com qualidade de UBER! Esse não tem medo de concorrência, pois sabe das coisas!

Na chegada, ele se confundiu e passou do portão do meu prédio, nem dez metros, coisa pouca, parando no portão do prédio vizinho. Desculpou-se inúmeras vezes, queria dar a volta na quadra sem cobrar nada, o que, naturalmente, eu não aceitei. Paguei a corrida arredondando o troco, como sempre faço quando dá. E já ia abrindo a porta quando ele me mandou esperar a fila de carros passar: – Vou abrir a porta pra senhora!  Eu agradeci, disse que não precisava,  ele insistiu. Argumentei,  agradeci e abri a porta. Ele, então saiu-se com essa:

– Por que que mulher é tão teimosa? Ô bicho teimoso!

Na Sala de Espera do Laboratório

No corredor a vigilante me entregou a senha e a instrução de aguardar. Ao abrir a porta, um mundaréu de gente! Muitas pessoas sentadas e ainda mais gente em pé. Nem tive tempo de procurar uma parede para me escorar e liberou o primeiro assento da fila mais próxima. Semana começando bem.

Abri um livro certa de que a coisa ia demorar. Em seguida a pessoa ao lado foi chamada. Uma senhora de cabelo pintado de preto sentou. Trocamos aquele sorrisinho próprio das boas práticas sociais. E a moça chamando! Era um tal de senta e levanta de gente que ficou impossível me concentrar na leitura. Daí que, preocupada em não perder a vez, passei a prestar atenção nos nomes chamados.

Como costuma acontecer em consultórios médicos, clínicas e hospitais, muitos velhos, pessoas de nomes simples como se usava antigamente, alguns de nomes estrangeiros,  alguns exóticos e também os inusitados, sempre os há. – Maria Consoladora!

A mulher ao meu lado não se conteve. – Cada nome que as mães da gente botam nos filhos, né? Concordei, mas argumentei que, por mais que o filho não goste do próprio nome, é importante lembrar que, em geral, a pessoa escolhe o que acha mais bonito. Que nem a gente fez com nossos filhos. Se bem que tem uns que, às vezes, eu penso: – Onde é que essa mãe tava com a cabeça, Santo Deus???  Não mencionei isso, claro! Desatamos a prosear sobre o tema.

Falamos da enxurrada de nomes da moda numa mesma geração, dos nomes compostos, das combinações esdrúxulas, da verdadeira tragédia ortográfica dos nomes estrangeiros de grafia abrasileirada que exigem soletrar o nome da criança desde a Carteira de Vacinação até o atestado de óbito, dos nomes dos nossos filhos, os meus e os dela, lindos, por sinal, dos nomes dos netos e já estávamos enveredando para outro assunto quando a moça chamou o nome dela. Gravidez indesejada. Só pode!

 

A Agenda do Severo

No inverno de 2012 liguei pro Severo. Queria convidá-lo para escrever a orelha do livro Cenas Urbanas e Outras Nem Tanto que eu estava por lançar  em outubro. Sabendo que o cara era multitarefas, comecei a conversa pelas beiradas temerosa de que ele dissesse que ficava muito honrado, mas infelizmente não tinha agenda, etc etc, como fazem os consagrados com os ilustres desconhecidos. Já ouvi cada uma!

Perguntei como ele estava, estava ótimo! Como sempre. Perguntei sobre a Preta e a filharada, todos bem, felizmente! Com a respiração em suspenso perguntei pelo trabalho: – A agenda tá frenética, mana!  Pudera! Dali a um mês ele faria oitenta anos e veria lançado o livro da Ana Lavrati sobre a sua inspiradora trajetória num misto de festa de aniversário e noite de autógrafos onde teve de tudo, inclusive um revival do Ponto de Encontro, o seu consagrado programa de rádio. Uma festança!

Me esforcei para parecer descolada: – Puxa, que pena! Quer dizer: que bom pra ti, que pena pra mim! -, mal disfarçando a frustração. Ele quis saber a razão. Falei que estava por lançar um livro de crônicas e que gostaria que ele escrevesse a orelha e coisa e tal, mas que entendia que ele não tinha tempo, claro! Ele ficou todo feliz, disse que tinha tempo sim, e que o faria com muito prazer. Pediu que eu enviasse os originais para leitura e dias depois me enviou o seguinte texto:

Crônica, a Poesia Nossa de Cada Dia

Insensato o coração que se deixa envolver pelo fascínio de classificar aventuras, anseios e paixões em termos de registros históricos ou de clássica objetividade protocolar.

Sentimentos, paixão, dor de cotovelo – seja lá o que for, por mais pobre que seja – tem que ser singelo, graciosamente sutil. Porque assim é a linguagem da crônica, assim é o cronista, assim é que se ama o que é essencial.

(…)

Antunes Severo

Editor do site Caros Ouvintes

E mais não digo para não incorrer na soberba que eu sei que é pecado e o meu balaio já tá quase cheio. Só digo que aquela noite fui dormir toda, toda! E assim eu fico toda vez que lembro da sua preciosa amizade e a daquela família.

Sô fraca?

Severo, Fátima e Tonhão _MG_3177Severo, Fátima Barreto e Antônio Michels no lançamento do livro Cenas Urbanas e Outras Nem Tanto. Infelizmente a única foto dele no evento. Foi até lá, só  uma passadinha, o tempo de um abraço, porque tinha um compromisso junto com a Pretinha. A cara da Fátima define a nossa alegria.