As Mentiras Que Ouço Por Aí…

Praça Vidal Ramos no centro de Laguna, SC

– Ô Santina! Se o (fulano) perguntá por mim, diz que não me viu. Depois te explico! Disse o homem, ao celular, entrando no ônibus. Pelo visto, a mulher insistiu, mas ele foi taxativo: – Depois te explico! O que se esconderia atrás daquela recomendação? Seria o “fulano” o patrão investigando o motivo da falta ao trabalho?  Um credor no esforço para receber o prometido? Um amigo querendo pedir algum emprestado?

É mais que sabido que o ser humano mente. Mente para tirar proveito, para fugir de constrangimento, para se livrar de responsabilidade. Há também um tipo de mentira não só aceito, mas até incentivado, a mentira social, em que todos os envolvidos sabem que o que se diz é mentira, mas fazem um pacto em nome da boa convivência.

Tirando os políticos, não conheci ninguém que mentisse tão descaradamente quanto minha tia Narair, a tia Dedé. Dona de uma beleza rara quando jovem, digna das estrelas de cinema, envelheceu precocemente em razão das vicissitudes da vida, que a vida é assim, cada um tem seu fardo para carregar, e, aos quarenta anos, tinha o rosto completamente enrugado, aparentando ser muito mais velha do que era na realidade. Mas, ao contrário das outras mulheres, mentia a idade para mais, aquela gozadora. Acrescentou vinte anos à sua idade real, de maneira que, aos quarenta anos, tinha sessenta. Aos cinquenta, tinha setenta. Mentia com tanta convicção que até as pessoas da família acreditavam.

Esperta ela: em vez de comiseração, recebia rasgados elogios à sua saúde e à disposição que demonstrava, subindo e descendo a rua onde morava, carregada de sacolas. Ao chegar em casa, ligava o rádio, acendia um cigarro, abria uma cerveja, saía dançando e gargalhando. Uma figura.

Pois dia desses viajei a Laguna, no sul do Estado e presenciei mais uma. Saí cedinho, pois queria dar um bordejo pela cidade, sentar num banco daquela praça tão bonitinha e observar as pessoas, rever o casario, lugares que eu não via desde a adolescência.

A viagem foi tranquila, apesar da chuva, o ônibus praticamente vazio, a maioria das pessoas com o banco inteirinho para si. Bem na frente, paralelo à minha poltrona, um moço, trinta e poucos anos, cabelo preso num rabo de cavalo, cara de quem faz pós-graduação, retornando para casa.  Como sei? Não sei; desconfio, pois além do jeitão de professor universitário, passou todo o tempo lendo um pequeno livro com aqueles selos e inscrições típicos de biblioteca. Fiquei curiosa para descobrir o título, mas não deu, as letras quase apagadas na capa desgastada de livro velho. O celular tocou interrompendo meu cochilo e a leitura dele. O moço atendeu: – Oi!… Tudo bem. Desculpa, mas não posso falar contigo agora. Estou dirigindo! E retomou a leitura. Eu virei o rosto, me rindo.

* Foto: Maria de Fátima Barreto Michels, a Fátima de Laguna

A Primeira Vez sobre a Ponte

Muito interessante que a ponte Hercílio Luz seja um ícone no mundo onírico também do Vinícius. Quando eu tinha 9 anos, portanto, há exatos 50, passei pela primeira vez, dentro de um ônibus sobre a ponte. Lembro nitidamente, pois desde a Laguna eu vinha tentando imaginar como seria aquela travessia primeira. O que ficou foi, na memória auditiva, o som do assoalho de madeira sob as rodas do busão em que íamos. De fato a ponte significava ir até a Capital, o que correspondia a um privilégio para mim naquela tenra idade. Parabéns à Norma que abre aqui um fórum afetivo cujo tema é a ponte.

Fátima de Laguna

Foto: Ponte Hercílio Luz de autoria de Maria de Fátima Barreto Michels.

* Maria de Fátima Barreto Michels é fotógrafa amadora, contista e poeta de mão cheia. Participou de algumas coletâneas, mas publica seus escritos preferencialmente na web, apesar da insistência dos amigos para que (se) lance (com) seu livro. Reside em Laguna, mas tem uma queda por Florianópolis.

Minha Bisavó Virou Borboleta!

(Quando eu conto essa história, a pessoa faz cara de “Não discorda que ela pode ser violenta!”)

Parece mentira, mas é sério. As mulheres da família faziam os doces para a minha festa de quinze anos quando a minha irmã, que na época tinha sete, olhou para a Vó de Laguna e, talvez, se dando conta da ordem natural das coisas, afinal a Bisavó já tinha noventa anos, disse: – Vó, será que a senhora vem ao meu aniversário de quinze anos? Ela respondeu: – Mas é claro, querida! A vó vem nem que seja como borboleta!  Morreu dois anos depois.

Reunidas, as mulheres da família faziam os doces para a festa de quinze anos da minha irmã quando, de repente, uma delas parou de falar e apontou a parede. Um silêncio emocionado tomou conta da cozinha. Lá estava ela, a enorme borboleta. Desconhecendo a promessa, meu pai pegou um pano de louça para espantá-la e, coitado, quase foi trucidado por um bando de mulheres ensandecidas.

São inúmeros os exemplos, vou contar mais um. Em 2003 estávamos eu, meus filhos e meus pais conversando na sala da sua casa, quando de repente meu pai olhou para o teto e disse: – Ô D. Aurelina! O que é que a senhora está fazendo aí em cima? Uma enorme borboleta negra manchada de rosa estava pousada no lustre da sala. Desatamos a rir!  – Esse pai! Meu pai acreditava nessas coisas, mas era, antes de tudo, um piadista.

No dia seguinte nos chegou a notícia do nascimento do Eduardo, meu querido, lindo e inteligente sobrinho-neto, o primeiro bisneto dos meus pais. Era esperado para maio, mas resolveu nascer em fevereiro, aos seis meses. Ficou na Maternidade até ficar prontinho e durante esse tempo vivemos um misto de felicidade e preocupação, mas sempre que a angústia apertava a gente lembrava que nunca estamos sozinhos. Afinal, não é qualquer um que tem uma Vó de Laguna como embaixadora para assuntos de natureza insólita.borboleta preta com azul

Foto: capturada na internet

Minha Adorável Vó de Laguna

Na família há quem não saiba seu nome. Chamava-se Aurelina (minha mãe recebeu o mesmo nome em sua homenagem) e era, na verdade, minha bisavó. Mas era assim que a chamávamos – Vó de Laguna – para diferenciá-la da filha Francisca, a Vó Chica, que morava perto da gente.

Era daquelas avós das histórias infantis, baixinha, delicada e bondosa. Tinha o olhar sorridente, de um azul intenso, trazia o cabelo preso num coque, usava broche, xale e meia fina. Era alegre, vivaz, apesar dos muitíssimos sofrimentos e privações.

Aos oitenta e tantos anos, tinha fama de andarilha porque morava em Laguna, mas vivia na estrada. Vinha de malinha para “passar uns tempos” e ficava de três a quatro meses transitando entre as casas dos inúmeros netos. Então voltava para sua base.  Preferia a casa dos netos porque as filhas queriam fazê-la sossegar o pito e isso era a última coisa que aquela velha queria fazer na vida. Argumentava: – Se eu ficar em casa a Morte sabe onde me encontrar. Eu, hein? Se ela quiser me levar que me procure, eu é que não vou ficar aqui esperando!

Todos a queriam na hora do aperto e nem precisava chamar. Bastava a carta chegar à Laguna e ela se desabalava para a casa do necessitado, “pra ajudar”. Se não havia o que fazer, ela ajudava do jeito que podia, ajoelhada, grudada no rosário. O neto pedia: – Reza por mim, Vó!Não precisa pedir, meu filho. A Vó vai rezar. Confia em Deus! Em Deus a gente confiava, mas contava mesmo era com a Vó. Aquilo sim é que era onipresença e infalibilidade! Salve Rainha, mãe de misericórdia! De vez em quando aparecia de surpresa, pois tivera um pressentimento.

Católica fervorosa, tinha sonhos premonitórios, conhecia ervas e benzeduras, rezava responso. Em outros tempos seria condenada à fogueira em praça pública. Adorava borboletas e tinha com elas uma estranhíssima relação de cumplicidade.  Às vezes, dizia ensimesmada: – Tem alguma coisa acontecendo. Hoje uma borboleta veio me arrodear no jardim…

À noite, sentava num banquinho, o banquinho da Vó de Laguna – cada casa tinha um -, para pitar o palheiro, cujo fumo ela picava diligentemente com seu canivete afiado – sim, minha bisavó tinha um canivete! – enquanto os bisnetos iam se instalando, em círculo, pelo chão. Alguém dava a senha: – Conta uma “estória” Vó?

Ela então desandava a falar de castelos e reinos distantes, príncipes valentes e lindas princesas, pais omissos, madrastas abusivas e bruxas más. Hoje reconheço naquelas “estórias” a riqueza da tradição oral, sua mitologia e os estágios da iniciação: a perda da inocência, a queda, a incursão pela floresta escura, o retorno à condição de selvagem, o circuito de provações, o aprendizado, o casamento sagrado e a recompensa final.  Conta de novo Vó? Ai, que saudade!

Enquanto contava histórias, ela enrolava o fumo, acendia o palheiro, pitava e passava o cigarro para o descendente mais próximo, não importava a idade – que, por sua vez, pitava, engasgava, tossia, mas não desistia e o passava adiante. O cigarro girava na roda repetindo uma cena ancestral: na escuridão da noite, uma tribo se reune e uma mulher velha conta histórias ao redor do fogo. Mais que o vício, ela socializava valores e nos conectava com o universo arquetípico e a Sabedoria do Mundo.

Um dia antes de eu completar vinte anos ela foi embora. Desde então uma coisa estranha vem acontecendo. Sempre que algo importante está para acontecer, uma morte, o nascimento de mais uma criança, um casamento ou aniversário, uma mulher da família telefona para contar que, há dias, uma borboleta está parada no umbral da porta. É o sinal. Ela veio pra ajudar.

Bença Vó!

* Foto: Praça Central de Laguna terra dos meus ancestrais e também da escritora Maria de Fátima Barreto Michels, condinome Fátima da Laguna, autora da foto.